Galáxias
Liliana nasceu filha de uma família de mercadores venezianos. Quando jovem, aprendeu muito sobre budismo e taoísmo de seu pai, que viajou para China em busca de seda, e que lá por muito tempo viveu, onde aprendeu sobre os deuses e artes marciais com um velho mestre do monte Wudang que residia no castelo de Kublai Khan. Desde criança ouvia sobre o rei macaco, Sun Wukong e os oito deuses imortais bêbados, principalmente Lan Caihe, imortal retratada carregando um cesto de flores e que subiu aos céus em um cisne. Liliana ouvia atenciosamente sobre a deusa que não se encaixava em gêneros, que aparecia sob muitas formas, fosse como um menestrel, um pedinte, uma bela mulher ou como uma pessoa que não se encaixava em nenhum padrão de gênero. Nos teatros era inclusive retratada como uma pessoa que se vestia com roupas femininas, mas que tinha voz masculina. Porém, mesmo que fosse imortal, aqueles que sentiam da mesma forma não eram bem aceitos em canto algum do mundo. Mas Liliana via em Lan Caihe aquilo que a libertara, embora não num nível sobrenatural, afinal sua família sempre foi muito católica e, para seu pai, não passavam de histórias.
Liliana cresceu, e como sempre se vestia com o que eram vistas como roupas de homem para a época, era sempre rejeitada por sua família e por todos da cidade, sobretudo por não ter aceitado o papel que a sociedade lhe impôs como mulher, de casar e ter filhos. Já adulta, fugiu para o Oriente Médio, onde se valeu das artes marciais que aprendeu com seu pai para fazer dinheiro. Após três anos, fundou sua própria companhia que trabalhava protegendo mercadores em viagem. O Sabre Escarlate, como conheciam Liliana, tinha esse nome devido a sua arma preferida, que sempre se banhava com o sangue dos seus inimigos.
Certo dia, enquanto protegia uma comitiva a caminho de Alexandria, foi atacada por um grupo de bandidos. Liliana e seus homens lutaram bravamente, mas eram muitos inimigos. Com três flechas cravadas em seu peito, caiu de joelhos e viu o mundo escurecer, enquanto amaldiçoava todo aquele mundo que não deixou ser quem era, e que teve que recorrer a violência para garantir seus direitos. Será que não deveria ter seguido com os planos de seu pai, e ter permanecido infeliz, porém viva?
Quando abriu seus olhos, estava em um lugar estranho. Havia muitas pessoas trabalhando, cansadas, e frequentemente oprimidas por outros que lhes batiam. Liliana logo se revoltou. Então correu desesperadamente, mas não importava para onde corria, voltava ao mesmo lugar. Então parou uma pessoa e perguntou.
“Onde estamos, que lugar é esse em que as pessoas aceitam ser humilhadas constantemente?”
Um homem de meia idade, muito ferido e com uma enxada que cavava o solo, respondeu, ofegante, mas sem tirar os olhos do seu serviço.
“Estamos no mundo do labor, governado pelo deus dos humilhados. Agora vá embora, preciso trabalhar antes que alguém venha me bater” disse o homem
Liliana, inconformada, correu, e correu, forçando toda sua vontade, até que chegou a um casebre onde viu um homem gigantesco, coberto em farrapos e com inúmeras feridas no corpo, que ergueu sua enorme mão e apontou para uma direção. Liliana viu uma enorme escada, que dava para um orbe colossal, repleta de construções. Após subir em um passo o que pareciam milhões de degraus, olhou para baixo e constatou que o lugar anterior também era um orbe. Caminhando, percebeu que havia inúmeras construções, pequenas e grandes, feias e magníficas, mas nenhuma pessoa. Até que ouviu o bater de aço. Caminhou até o lugar, onde viu outro enorme ser, desta vez trajando vestes de ferreiro. Em uma caixa, ela viu inúmeros outros orbes, de diferentes colorações.
“Se está se perguntando o que são essas coisas, são planetas” disse o gigante.
“Planetas? O que seria isso?” questionou Liliana.
“São o que você chama de mundo, onde você viveu era um, agora aqui no pós vida, existem outros. Cada um acima do outro, formando uma galáxia. E há muitas galáxias a mais, pode acreditar. Agora me ajude com isso, preciso terminar mais um”.
Enquanto ajudava o gigante, notou que ele estava preso ao pé por correntes, e essas correntes iam a um ponto em que perfuravam o chão.
“Ah, essas correntes? Até mesmo os deuses nos planetas baixos são nada mais que escravos de outros deuses. E até mesmo aqueles deuses com ego maior do que qualquer planeta que construo, são escravos de outras entidades, mesmo que não usem correntes, e assim por diante. Não há como fugir disso”
“Eu não aceito. Ao menos no pós vida temos o direito de sermos livres e felizes”
“boa sorte com isso, criança” afirmou o homem, enquanto ainda martelava o próximo planeta.
Liliana novamente correu. E com a velocidade do pensamento, foi levada a outro planeta, onde pairou no ar enquanto observava as pessoas. Era uma cidade maravilhosa, com pessoas muito bem vestidas. Mas ela tinha sensações ruins. Viu então algumas mulheres em uma igreja, e elas confabulavam umas contra as outras. Entrando na construção, viu um imenso caixão e um ser colossal e putrefato dentro com as mãos cruzadas. Estava dormindo. Mas Liliana podia ouvir seus pensamentos.
“Sou escravo de meus desejos. E meus desejos não são meus, mas sim daqueles que estão acima de mim, e a função que eles desejam que eu exerça”.
Liliana ficou horrorizada, e sua mente começou a voar. Em outro planeta, repleto de luzes penduradas, viu pessoas rindo, festejando. Viu um outro deus se entregando aos prazeres, se alimentando de tudo que era produzido pelo primeiro planeta, com ele e seu séquito vivendo em construções produzidas pelo deus ferreiro que a ajudou.
Eis que no meio do tumulto, sua visão para em um homem com aparência sábia, de cabelos grisalhos e barba longa. Esse senhor, no meio da infinita festa, ao mesmo tempo que parecia não fazer parte dela, olhou diretamente nos olhos da viajante e disse:
“Essa é a galáxia daqueles que são governados por seus desejos de boa vida, não importando o mal que causem. Mas há outras galáxias e deuses, cada qual com sua função. E, no fim de tudo, um deus supremo."
Antes que dissesse mais uma palavra, o velho sábio foi calado, como que por uma mão invisível que lhe tapasse a boca e que não desejava que falasse mais. Liliana então se encolheu e começou a chorar copiosamente.
"Será que tudo é sofrimento? Não importa aonde eu vá, vou sofrer e ver outras pessoas sofrerem? Se mesmo deuses sofrem, o que resta para mim?" Pensou. até que tudo escureceu novamente. Enquanto chorava, ela sentiu cheiro de rosas, que a fez abrir os olhos.
Observou muitas pessoas felizes, se divertindo, e trabalhando. Será outro planeta? Pensou. Mas esse era diferente, as pessoas realmente se ajudavam, e era um lugar que lembrava os reinos orientais que seu pai um dia lhe falou. Seguindo esse cheiro, viu uma pessoa com um vestido muito bonito, um rosto tão lindo que não poderia ser descrito, que carregava um cesto de flores. Essa pessoa então olha quem a observava.
“Tudo é efêmero. Tudo é transitório”. Disse. Então a pessoa estende a mão para Liliana, enquanto sorria de forma jovial. Pegou a mão da recém chegada e mostrou como, naquele lugar, todos são o que são, sem necessitar esconder-se por medo. Era como uma nova vida.