As Aventuras de João no Colégio Sísifo
Lembro-me de que João era o aluno mais espevitado do Colégio Sísifo. Apesar de pré-adolescente, na casa dos 11 anos de idade, fazia bagunça de gente grande. Chegara ao 6° ano do Ensino Fundamental deixando em polvorosa toda uma direção. A equipe de professores já conhecia a fama do menino, o qual tinha as peripécias sempre mencionadas em conversas nas salas dos professores. Em suas aventuras no Colégio Sísifo, João sempre agia sozinho. Não gostava de atuar em bandos. Embora influenciasse outros alunos “negativamente”, como gostava de dizer algum professor recém-formado que passava para substituir alguém por uns dias, João tinha o prazer da atuação solitária. Agia como um lobo desgarrado da matilha. Afastado da regulação média sobre o comportamento coletivo, as ações de João ganhavam contornos de imprevisibilidade. Tudo era possível.
No imaginário da criança, governava o rei da criatividade. Uma vez, o menino chegou ao colégio mais cedo porque o pai teria uma reunião inadiável. Já havia notado que o pessoal da cozinha chegava sempre uma hora mais cedo para preparo dos salgados na cantina. Dotado da perícia de um lobo que salta sobre a presa, João precipitou-se para a bancada de salgados, depositando ali o pé esquerdo de um tênis velho que possuía. Como o portão da cantina ficava fechado até a hora do recreio, ninguém percebeu. João esperou que as merendeiras colocassem os acepipes nas prateleiras transparentes e depois, furtivamente, passou abaixado enquanto duas funcionárias vistoriavam alimentos na despensa. Quando a porta da cantina foi aberta às 9:30 h, a molecada já se aglomerava na frente da bancada. E então, tchanâm! Eis que o tênis chulezento reluziu em meio aos salgados! Uma algazarra incomum rompeu em meio aos estudantes que, entre gargalhadas, se perguntavam quem fora capaz de realizar tamanha proeza. Toda a direção se sentiu humilhada diante da esperteza de um menino de onze anos. As merendeiras se reuniram, implorando ao diretor para que não houvesse demissão. Identificado o menino João depois que fotos do tênis circularam nas redes sociais de pais de alunos, o garoto amargou uma semana de suspensão.
A verdade é que o pequeno João não gostava dessas bagunças comuns a outros meninos de sua idade. Não se intrometia em brigas com os colegas, não desrespeitava as meninas e tampouco, os professores. A alegria dele repousava na elaboração de uma arte para que o resultado produzisse assombro geral. Tinha uma disposição mental equiparável a de escultores ou pintores. A sensação que sua obra produzia no público dava-lhe prazer.
Em outra oportunidade, uma empresa de laticínios apareceu no Colégio Sísifo fazendo uma grande campanha de iogurtes. Cada aluno ganharia duas unidades do produto para degustação na hora do recreio. Como naquele dia o tempo da merenda arrastou-se um pouco mais em função da campanha de marketing, o menino João falou aos colegas que precisaria usar o banheiro antes do recomeço da aula.
- Aí, galera! Acho que esse iogurte não me fez bem, não! Tenho que ir descarregar no banheiro.
Em meio à risadaria dos colegas e gritinhos de “vai lá, cagão!”, o menino subiu o lance de escadas em direção ao pavilhão de aulas – com as duas bisnagas de iogurte cuidadosamente guardadas nos bolsos da calça – e lambuzou as maçanetas das portas de todas as salas. Passava o iogurte na parte de baixo das maçanetas ovaladas para que os professores não suspeitassem de nada. Quando o sinal de término do recreio ressoou sobre o corredor, João refugiou-se no banheiro. Um a um, os professores ficaram estupefatos diante das mãos repletas de iogurte. Em uma sala, a menina chegou primeiro e tentou abrir a porta. Lambuzada a mão direita, começou a chorar de aflição. João saiu do banheiro em tempo de se deliciar com o frisson que sua obra produzira.
Extasiados, os professores entronizavam o pequeno João como deus e rei nos Conselhos de Classe. Diziam que faltava afetividade. – Ele deve ser maltratado pela família. – Ah, um menino desses não pode ser normal. Ele deve apanhar em casa. – Será que abusam dele? – Mal exemplo pra todo mundo, essa criança deveria ser expulsa do colégio. – Deve ser falta de carinho em casa. Aí vem pra escola querendo aparecer. – Olha, pela minha experiência na educação, alunos assim costumam dar muito problema no futuro! – Vocês acreditam que ele faz piadinhas a manhã toda? – É um “bobo alegre". Está faltando correção em casa. – Na idade dele, meus filhos tinham responsabilidades. Esse aí a família deixa do jeito que quer. – Precisamos orientar os pais a procurarem um psicólogo para ele, senão vai virar bandido. – Gente, se ele tomar uma dosezinha de ritalina, sossega o facho! – Será que tem religião na vida do João? Ele foi batizado? – Sabem quem estourou bombinhas no banheiro das meninas em plena segunda-feira? Ele mesmo! – Já acharam quem colocou guaraná na tinta do pintor? Preciso nem falar, né?
Essas e outras mil conjecturas de moral superior recheavam tanto as reuniões quanto o horário de intervalo na sala dos professores. Quando o assunto esfriava, os docentes pegavam um biscoito, enchiam uma xícara de café e logo se punham a descrever mais uma travessura do menino. Poderíamos dizer que a presença de João tornara-se um elemento gregário na convivência entre os professores. As traquinagens do moleque eram o único tema capaz de atrair atenção geral. Em certa ocasião, um professor de História cujo nome não me recordo, afirmou que João era parecido com um antigo personagem da mitologia grega. Esse professor deu umas aulas no 9° ano em substituição, mas depois se afastou do colégio. Claro que ninguém parou para ouvir essas conversas de mitologia que nunca fizeram parte da vida de ninguém, não é mesmo?
O pai de João era um dos ótimos advogados da cidade. Por ironia do destino, mantinha um escritório em sociedade com a esposa do diretor do Colégio Sísifo. A conduta de João colocava alguns constrangimentos para a direção da escola, de modo que o assunto deveria ser administrado “da melhor forma possível” (assim falava o diretor) pela coordenação pedagógica. Curiosamente, a aparente solução veio justamente após o recesso escolar do meio do ano. O pai de João autorizara que o menino saísse trinta minutos mais tarde. Então, um castigo pós-aula poderia ser imposto à inquieta criança. Parece que a conversa não adiantava mais. Para o pai de João seria uma medida até conveniente postergar a busca do menino na escola, pois teria um tempo mais confortável para almoçar. Diante disso, os pedagogos pensaram em uma medida clássica: João deveria escrever em um caderno inteiro de noventa páginas os seguintes dizeres:
NÃO DEVO SER BAGUNCEIRO
Façamos as contas. O caderno tem 90 páginas. Cada página conta com 35 linhas. Se a frase for escrita em cada linha, contaríamos 90 X 35 = 3.150. Só que a letrinha cursiva de João, espremidinha que só, permitia-lhe escrever em duas colunas por página. Logo, teríamos 3.150 X 2 = 6.300 vezes. Retido por trinta minutos após as aulas, eis que João começou a preencher o caderno em sua jornada rumo ao vazio.
NÃO DEVO SER BAGUNCEIRO
NÃO DEVO SER BAGUNCEIRO
NÃO DEVO SER BAGUNCEIRO
...
Depois de um tempo, a atividade tornou-se automática, permitindo à inteligência de João algumas reflexões autônomas sem prejuízo do trabalho. A parte do “Não devo ser” chamou-lhe especialmente a atenção. O menino construiu uma reflexão até sofisticada para a sua idade. “Poxa, se a escola é o lugar em que dizem que você precisa se preparar para SER alguma coisa, por que não devo ser, não devo ser, não devo ser? Que coisa estranha!” É isso mesmo! O castigo imposto à criança pretendia afirmar pela negação. Uma vez negada a bagunça ao moleque, o que seria posto no lugar?
Depois que tomou consciência do que estava acontecendo, João preencheu dedicadamente as 6.300 frases do caderno enquanto elaborava os detalhes da sua próxima obra de arte.