Minha feliz morte

 

      E lá estava eu, feliz da vida! Acabara de devorar um delicioso mosquitinho. É! Tinha aprendido direitinho com a minha mãe. Hoje ela não me dá muita bola nas caçadas, mas eu a observava muito. Notava o seu cuidado, cada passo silencioso e o bote preciso. E como valeu a pena! Eu já estava crescidinho, mas, com minha mãe sempre falando: - Tixinho, cuidado com os cantos das portas! Pode me chamar de “Ticssinho” ou qualquer coisa parecida. Mas se achar que deve ser Tixinho, também não há problema. É uma bela pronúncia do mesmo jeito.

    Minha casa era enorme. Apesar da natural rapidez, eu levava muito tempo para percorrê-la. Tinha muitos cômodos e o meu era apenas um quarto com duas camas. E você sabe, eu não usava nenhuma. É que eu não dormia dessa maneira. O quarto era claro e de vez em quando eu virava uma bela gelatina cor-de-rosa ou sei lá o que. O importante é que esta transformação me ajudava a defender-me melhor.

     Finalmente, o meu amigo veio chegando. Não sabia o seu nome e não compreendia a sua língua. Ele era o verdadeiro morador do lugar, dormia numa das camas de que lhe falei e, apesar de um pouco tímido, era simpático. Acho que ele nunca me percebera por ali. Ah! Pouco me importa! O fato é que toda vez que chegava, ele pegava um objeto parecendo um grande móvel de madeira em forma de dois círculos juntos, sendo um maior do que o outro. Depois começa a esfregar uma das mãos numa teia de muitas linhas, esticadas numa das partes, que mais se parecia com um braço. E ali ficava por minutos, às vezes, horas. No princípio era um estranho barulho o que saía daquelas “teias de arame”, sei lá, mas com o tempo fui me acostumando. Esse barulho costumava acordar-me muito cedo – minha caçada noturna havia sido um pouco cansativa, mas farta. Mas, no fundo, eu gostava de ser despertado assim.

      Dos muitos sons que eu ouvia, ora de manhã, ora ao meio-dia e bastante à noite, eu acabei raciocinando um pouco. Um novo amigo esteve outro dia no quarto e entre as conversas, descobri que aquele móvel esquisito se chamava violão. É! Violão! Eu não falo, mas sempre prestava atenção nos lábios e nos sons que saiam da boca do meu amigo. Foi um grande achado. A partir daí, fui entendendo o que saía de sua boca e gostando ainda mais do outro som, aquele que saía do violão.

      Minha mãe, apesar de distante, sempre me chamava à atenção: - você deveria ser uma lagartixa comum, mas é tão estranho! Vive correndo riscos! Ela tinha razão. Era só o meu amigo chegar que eu logo escolhia a parede mais próxima dele. De ponta cabeça ou em qualquer posição que quisesse, olhava-o curioso. Penso que ele podia tocar bem, mas não era capaz de andar pelas paredes como eu! Tecnicamente falando, eu tenho nada mais, nada menos, nas minhas patas, “lâminas transversais adesivas” – eis o meu charme – e por isso eu não caía nunca. Ele coitado, umas mãos mal feitas e... ops! Esqueci-me. É verdade que, era a partir delas que saía aquele som tão gostoso de se ouvir!

      Você pode não acreditar, mas eu aprendi que tudo que o meu amigo fazia, ora com a boca e o violão, ora com o violão sozinho, chamava-se música. Havia dias em que ele não estava inspirado e o som saía esquisito. Mas, tinha dias que era uma beleza. Aí, eu me descuidava ainda mais: ficava em paredes muito próximas e, pior, nos cantos de portas, tudo que não era seguro. Fiquei sabendo que quando o som era ruim, é porque era o começo de um ensaio.

      Acredite se quiser, mas eu aprendia um pouco a cada dia. As músicas tinham nome. Tão logo ele começava a esfregar os dedos naquelas teias, eu já sabia qual era o som. Convivência e muita intimidade? Tinha uma linda chamada “Love is blue”. Era somente o violão, mas ficava tudo tão certinho, um som atrás do outro, sem desafinar. Aprendi isso também: o que era afinar e desafinar. E depois o que era tocar, cantar e solar. E não havia teias de aranha coisa nenhuma. Aquilo eram cordas e eu soube disso num dia que uma apareceu arrebentada. Uma criança pequena entrara no quarto... Ele nunca soube do autor do estrago e tinha muitos sobrinhos. Ah! Se eu pudesse falar...

      Eu adorava todas as músicas. Ficava pensando comigo como era possível criar sons tão harmoniosos. Alguns eram invenção dele mesmo. Outros não. Ele tocava uma chamada “Alvorada” no violão e, às vezes tocava e cantava outra de nome “O novo dia”. A essa altura eu já estava entendendo de tudo, letra, música, interpretação...

Certo dia ele começou a tocar uma música maravilhosa chamada “Jesu, of Man’s desiring” que queria dizer, “Jesus, alegria dos homens”. É de autoria de um compositor alemão chamado Johann Sebastian Bach, um dos maiores compositores do século XVIII. Gostou do meu crescente conhecimento? E assim eu ia me deliciando, ora com um mosquitinho distraído, ora com aquelas maravilhosas canções. De vez em quando ele se ausentava e eu sentia muito a sua falta. Eram dias longos e terríveis. Costumava nem caçar. A minha prioridade deveria ser mosquitinhos, mas era, também, minhas “músicas”. Adorava o meu amigo e tudo o que ele fazia.

    Mas, nessa história, havia uma coisa que me incomodava muito. Eu não suportava o fato de ser tão fã desse artista – outra palavrinha nova que aprendi – e sequer ser notado naquele quarto. Acho até que ele me via! Mas eu queria que ele soubesse de uma maneira especial o quanto eu adorava aquilo tudo! Vivia ansioso para ser percebido, mas como fazer? Parecia que ele não estava nem aí! Eu era uma simples lagartixa! E minha mãe continuava a me prevenir: - Meu filho, você tem chegado muito perto! Parece entorpecido! Isso não é bom para você. O que minha mãe não sabia era que, além de ficar idolatrando aquelas músicas, eu também pretendia me revelar ao meu ídolo e, por isso, me aproximava tanto.

      Meu amado cantor recebeu a visita de um outro amigo. Pareceu-me que falavam sobre músicas novas, sei lá o que. O colega insistia em dizer que “os festivais” estavam precisando de coisas novas, diferentes de tudo que estava aí. Foi quando, naquela noite eles, exaustivamente, tentavam fazer uma nova música. Muito curioso, fui me aproximando. Quem sabe, telepaticamente, de lagartixa para ser humano, eu não poderia inspirar-lhes alguma coisa? Cheguei bem perto até me esconder num cantinho da porta entreaberta. Subitamente o meu amigo começou a tocar algo novo, lindo e majestoso. Fiquei estático. Ousei imaginar que aquilo nada mais era do que uma interação cheia de sentimento entre eu e ele. Enfim, algo que o inspirava. Foi quando o visitante, subitamente, se levantou, saiu do quarto e fechou a porta, porém me atingindo brutalmente. Não me recordo de ter sentido coisa alguma naquela hora. Em seguida ele retornou, indagando seu amigo: - Que raio de música é essa? Não combinamos coisa diferente, novidade mesmo? Não vamos chegar a lugar algum com isso! Ao que o meu amigo respondeu: - Calma. Se era para ser diferente, eu estava imaginando uma música inspirada numa largatixa bem pequenina que há tempos vive aqui nesse quarto. Acredite. Eu a vejo todos os dias e parece que ela adora música. Quem sabe não vai gostar dessa também? Não tínhamos que fazer uma coisa nova, diferente? Então...

Foram meus últimos instantes de vida. Mas estava feliz como nunca. E adormeci para sempre.

 

 

Luciano Abreu
Enviado por Luciano Abreu em 05/12/2022
Reeditado em 07/12/2022
Código do texto: T7665039
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.