CONTOS DE OUTONO/INVERNO. A SOPA DE PEDRA.
O vento frio do início de inverno. As folhas secas cobriam o banco da praça. Fátima estendeu a velha coberta para a filha de dez anos se sentar. -"Mãe. Estou com fome." A mulher olhou para a filha. Uma lágrima escorreu. -"A senhora está chorando? Não vou mais pedir comida." O estômago da mulher roncou. Ela enfiou a mão na mochila. -"Puxa. Comemos os últimos morangos, Sofia. Na festa do rei Leonardo." A menina sorriu. -"É verdade. Tinha me esquecido que o rei Leonardo era guloso e comeu toda nossa comida." Há dias caminhando, Fátima brincava, usava a imaginação inventando histórias pra filha não pensar em comida. -"Essa cidade é bonita, mamãe. Quem sabe o rei daqui não seja glutão e nos convide para um banquete?" Sofia estava esperançosa. -"Vamos orar pra isso acontecer, filha. Orar, é o que nos resta e nos fortalece." Fátima sentiu as pernas formigando, visto que tinham caminhado muito. A fonte da praça. Ao menos tinha água pra beber. As pessoas passavam. Fátima e Sofia eram ignoradas por completo. Ninguém dava-lhes esmolas. Era como se fossem invisíveis. Fátima e Sofia percorreram todo o vilarejo. As igrejas fechadas. As casas com muros altos. -"Nenhum pé de fruta nas ruas. Aqui é cada qual no seu quadrado." Fátima estava desesperada. Mãe e filha dormiram no banco da praça, tendo as estrelas como teto. Sofia agarrada a mãe. A única coberta cheia de buracos. A menina dormiu, com o gorro e o par de luvas da mãe. Rezando, Fátima adormeceu. -"Acordem. Não podem ficar aqui." A mulher sentiu apertarem seus ombros. Os primeiros raios de sol. -"Bom dia, seu guarda." O policial ajeitou o quepe. -"Minha senhora, nossa cidade não tolera indigentes e pedintes. Está na constituição da cidade. Vocês têm até o final do dia pra irem embora pra outra localidade." Fátima notou a voz embargada do policial. -"Está bem. Só queremos descansar. Estamos andando há três dias, sem comer nada." O policial não se admirou. -"Muitos passam por aqui, na mesma condição que vocês. Muitos, eu me incluo entre eles, não concordamos com as leis daqui." Fátima o acalmou. -"Entendo. Maior que a lei deve ser o amor. Esse é o maior mandamento, amar o próximo." O guarda se foi. Sofia acordou. -"Sonhei que a gente estava numa festa, com muita comida, nessa praça." Fátima sorriu. -"Foi sonho mesmo, filha. Vamos embora agora." A menina era insistente. -"A gente comia sopa, mamãe. A praça estava cheia de gente. A senhora dava sopa pra todo mundo." Fátima se ajoelhou. -"Admiro sua força, sua fé pois eu que sempre lhe disse que sonhos podem se tornar reais, não acredito. Eu vou alimentar a todos? Eu que nada tenho. Se a gente não comer, morreremos." Fátima não prosseguiu. Sofia acariciou seu rosto. -"Ainda creio que sonhos se tornam reais. Não morreremos." A menina apanhou uma grande pedra. -"Pra senhora." Fátima agradeceu. -"Obrigada, querida. Vou fazer uma sopa de pedra " Sofia sorriu. A menina apontou pra uma lixeira, onde um grande caldeirão de bronze amassado reluzia aos raios de sol. Fátima ficou parada, olhando o caldeirão, a pedra na sua mão e lembrando do sonho da filha. Ela pegou a mão da filha. -"Vamos levar esse caldeirão pra praça." Fátima colheu gravetos e acendeu o fogo. Dois tijolos amparando o caldeirão, já com água pela metade. Fátima lavou bem a pedra e a colocou no caldeirão. A água começou a ferver. Sofia se aqueceu perto do fogo. -"Sopa de pedra. Vai ficar uma delícia, mamãe." O policial se aproximou. -"Agora deram pra cozinhar? O que vai ser?" Esticou o pescoço pra cima do caldeirão. -"Sopa de pedra. Minha mãe é especialista nisso." Disse Sofia, sorrindo. -"Uau. Nunca experimentei. Se colocar algumas batatas, pode melhorar. Eu não quero interferir na receita, minha senhora." Fátima fez uma careta. -"Sou fiel a receita de minha trisavó mas vou fazer uma exceção. Eu colocaria batatas, se tivesse." O guarda exultou. -"Eu tenho batatas no quintal. Vou buscar." Tempo depois, uma mulher se aproximou, curiosa. -"Sopa de pedra? Nunca comi." Sofia estava entusiasmada. -"Receita exclusiva da minha mãe." A mulher olhou dentro do caldeirão. -"Hum. Posso trazer cenouras, se quiser. Ficaria mais colorida e nutritiva.": Fátima concordou. -"Não vai na receita original mas farei uma exceção. Deus lhe pague." A mulher se foi. Voltou com as cenouras e outras três amigas. Elas olharam para dentro do caldeirão. Tempo depois, uma delas trouxe aipo, outra trouxe mandioca, outra trouxe um pedaço de carne. O frio aumentou. O vento espalhou o cheiro bom da sopa. As pessoas espalharam a novidade da sopa de pedra. O padre passou pela praça. -"Que cheiro bom. É o mesmo cheiro bom da sopa de minha falecida mãe." Ele olhou para dentro do caldeirão, salivando. -"Minha mãe usava beterraba. Ficava vermelhinha a sopa dela." Sofia olhou pra mãe. -"Vai na receita original?" Fátima fez um olhar de preocupação. -"Não vai mas podemos fazer uma exceção. Traga beterrabas, por favor." O padre a abraçou. -" Vou trazer outro caldeirão pois esse tá ficando pequeno. Trarei pães. Sopa de pedra pede pão pra acompanhar." Fátima concordou. -"Aqui tem muita gente. Precisaremos de pratos e colheres, padre." O prefeito e alguns comerciantes passaram pela praça. -"O que está havendo aqui?" O prefeito viu a fila de pessoas, o guarda e o padre conversando. -"Sopa de pedra? Nunca experimentei, o cheiro é ótimo." Disse o bebum Rafael ao prefeito. -"Antes de entrar na fila, traga alguma coisa pra sopa de pedra, prefeito! Eu trouxe um pouco de feijão e a dona Fátima disse que ficaria perfeito na sopa. Não vem furando a fila, não." O prefeito e os comerciantes se foram mas voltaram depois, com ingredientes pra sopa. -"Trouxe costeletas de cordeiro. Não sei se combinará na sopa. " Disse o prefeito a Fátima. -"Quando é de bom coração, combina sim. Não tá na receita original mas acho que vai combinar.." Sofia foi a primeira a ser servida por Fátima. -"Minha filha é a provadora oficial da sopa de pedra." O guarda ajudou a menina a sentar-se no banco. Faminta, a menina devorou a sopa em segundos. Ela sorriu e ergueu o polegar. -"Está aprovada. Podem se servir." Todos aplaudiram. Fátima e as beatas da igreja serviam a sopa, o guarda e o padre davam um pão a cada pessoa. A praça cheia. As pessoas comendo, satisfeitas, sentadas no chão, no gramado, no coreto, nas escadarias da igreja . -"Hummm, delícia." Diziam uns. -"É a melhor sopa que tomei na vida." Diziam outros. -"Não achei a pedra mas ela deu um sabor divino a essa sopa." Disse o padre. Fátima comeu a sopa com prazer com prazer, ao lado de Sofía. -"Seu sonho se tornou real, Sofia. A praça está cheia, todos alegres e satisfeitos, aquecidos pela sopa de pedra." O prefeito fez um longo e exaltado discurso, exaltando aquele acontecimento de congraçamento e solidariedade. -"Vamos realizar outros eventos iguais a esse. Onde está aquela mulher com a criança? Ela será nossa cozinheira oficial." O padre subiu no coreto, falando daquele momento especial e abrindo a igreja para eventos parecidos, etc. O policial procurou por Fátima, por toda a praça e não a encontrou. Fátima e Sofia já estavam longe da vila, caminhando ao lado de uma floresta. -"Trouxe alguns pães, filha. Não passaremos fome na nossa caminhada até a próxima vila. Lá, faremos outra sopa de pedra." Sofia levava o caldeirão de bronze, que Fátima tinha lavado na fonte da praça, sem ninguém perceber. -"Aqui está a pedra. Alguns estavam pensando que a pedra tinha derretido na sopa." Fátima riu. -"Por um momento até eu acreditei, Sofia." FIM