Desafio Duma Princesa

Por Nemilson Vieira (*)

Morava numa casa de sapê, com a mãe e os irmãos, nos termos duma província distante da povoação.

Herdara do pai uma viola amarrada de arames, uma égua marchadeira e o dom de versar.

O animal era o meio de transporte mais certo naquele ermo. Servia na sua locomoção à cidade para as compras semanais; às visitas nas redondezas.

Talvez pelos muitos prosadores, poetas existentes na região a majestosa filha dum rei o convencera a convocar estes artistas à sua presença; em que iria desafiá-los nas prosas e nos versos.

O rei atendeu o desejo da filha: abriu as inscrições e estabeleceu uma data limite para a realização do evento.

O que se sobressaissem aos improvisos da princesa teria como maior prêmio o seu amor; se casariam. -- Se quisessem poderiam residir no Palácio, a residência oficial da família real.

Os desclassificados seriam jogados num calabouço escuro e frio. Seriam servidos duma água, uma couve, um angu. Somente para não morrerem de sede e fome.

Se houvesse um vencedor, encerrava-se imediatamente a competição. Os derrotados, retidos no porão, seriam soltos imediatamente.

Se ninguém a vencesse, todos eles poderiam ser jogados aos leões famintos da Corte.

Temerosa do filho não se dar bem no desafio da princesa, a mãe o aconselhou muito a não se meter naquilo.

Os amigos torciam pelo seu sucesso, imploravam que fosse.

Germano resolveu inscrever-se para participar.

“Quem não arrisca não petisca…”.

No dia do embate, bem cedo arriou a besta e seguiu num passo picado. Arreio bastante gasto pelo tempo de uso e intempéries, mas não havia outro.

Roupas remendadas, mas limpas, num saco de estopa, despediu-se da mãe com um abraço, um beijo, a bênção…

A velha ficou chorosa pela casa apegava-se por uma boa sorte ao Germano naquela empreitada.

A Guarda Palaciana tentou impedi-lo de entrar, por algum motivo, mas terminou permitindo.

Adentrou-se no pátio montado na égua e assoviava sei lá o quê!

Aos poucos a prisão se enchia dos candidatos derrotados pela princesa, com os seus, gracejos, proseados…

Germano no fundo temia; passava um filme ruim na sua cabeça.

Não queria ser mais ‘um enclausurado’ a servir de alimento aos animais carnívoros do rei.

Enfrentaria a princesa de cabeça erguida, mas precisava dum particular com o rei antes de participar.

Muitos dos presentes não botaram fé, mas ele conseguiu a desejada audiência!

Ficou acertado que ele poderia responder os desafios ao mesmo nível que viessem.

A princesa imponente, com um belíssimo cachecol, um colar de pérolas no pescoço, uma viola de ouro nas mãos e boas cantorias vencia um a um.

Germano aguardava calmamente a sua vez chegar.

Dentro duma camisa de chita, com lencinho vermelho dobrado no bolso superior dum velho paletó...

Calça remendada no traseiro, chapéu de palha atolado na cabeça, botinas a soltar a sola, não via a hora da cobra dar o bote…

Chamado a frente Germano já ouvia num repique da viola, a princesa vociferar em prosa e verso:

— Seu moço desça da égua/ Tira o saco das costas/ Entra cá para o salão/Vem beijar as minhas nádegas.

Apesar de souar como um grave insulto houve aplausos à princesa.

Para muitos fora algo arrebatador, fenomenal!

“Tratar bem mandou lembranças” — Como bem dizia o Jacaré.

Germano não deixou barato:

- Moça, para beijar as suas nádegas / Está diante do meu ó / Tem a cabeça pelada, redonda / Nariz dum orifício só... 

O público do contra não o perdoou e reagiu com gritos de vaias. Pediam a sua retirada imediata.

“Isso não é coisa que se diga a uma princesa!".

Parte da multidão apoiavam o Germano em gritos: “Fica! Fica! Fica!” 

A princesa constrangida abandonou a competição. Enclausurou-se no Palácio a morrer de vergonha.

Aquilo fora como uma pancada na sua alma 'pura'.

Achava-se no direito de somente ela falar o que bem viesse à sua mente.

Um insulto imperdoável aquele, ao seu ver!

O rei aguardou dez minutos pelo retorno da filha e, como ela não voltou…

A encontrou a chorar junto à mãe. Não passou a mão na sua cabeça. Deu-lhe a maior lição de moral: — volta para o seu lugar! Quem começou a baixaria? Agora aguenta bobalhona!

A moça voltou, e não repicava a viola como antes. Pré-sentia que as suas próximas palavras não iriam impactar, convencer o jurado, o povo.

Sobrevivia ao embate...

Tentou fazer uma graça: — Sete vezes fui casada/ Sete maridos possuí/ Eu juro por tudo/ Que sou virgem como nasci.

A multidão vibrou, nos aplausos e gritarias.

Germano no repique da viola, nos versos e reversos deu a pancada de misericórdia: 

— Se for virgem como nasceu/ Aconteceu algo estranho/ Os homens ‘morderam as fronhas’ / Ou, você não tem aranha.

A desafiante princesa arregalou os olhos ao Germano e ao público, o máximo que pôde e, em pânico, tornou a correr ao Palácio... 

A multidão um tanto quanto dividida e confusa não sabia bem o que queria.

Aplaudiam, vaiavam nem se sabem a quem mais; virou uma celeuma!

Um nó na cabeça do Germano, que, resolveu dizer mais algumas palavras num improviso, ao som do seu instrumento:

— Ao mesmo tempo, que me mandam ir/ Logo pedem que eu fique/ Estão igual a coro de joelho/ Vai adiante e volta atrás.

A princesa não voltou para continuar seus gracejos sem graça, e o rei não fora mais atrás dela. Para ser injusto bradou...

"A minha filha não aguentou continuar na competição, fugiu por duas vezes; esquivou-se. Às vezes que fez uso dos seus improvisos desmoralizou o poeta do povo. Os seus dizeres a feriram como ponta de espada. Fora ela que primeiro não deu-se ao respeito."

Houvi-se como nunca um silêncio profundo...

A Magestade pediu licença ao Germano, levantou o seu braço ao céu e bradou: — o declaro vitorioso deste grande desafio...

No dia da oficialização do seu casamento com a princesa Angélica, soltou todos os seus colegas, poetas e pensadores que estavam em situação de privação de liberdade, por não terem ido bem nos improvisos. 

Ao comentar-se sobre este grande acontecimento, os ex-presos, defendiam o Germano: “aquele homem desceu do céu e salvou-nos da morte”. 

Germano nunca deixou de ser a mesma pessoa humilde de sempre. 

Vivia com o joelho no milho a agradecer pela princesa e filhos maravilhosos que ganhara com muito sacrifício.

Sua égua morrera de velha nos domínios do reino. 

A viola amarrada de arame, a vestimenta e os outros apetrechos, ainda fazem parte do acervo histórico do Palácio. -- A servir como memorial desta história.

*Nemilson Vieira de Morais

Gestor Ambiental/Acadêmico Literário.

(18:08:17)