ELE QUERIA SER..."O DONO"!

Sua história sempre fora ali narrada pela "boca-pequena", sempre corrente, duma redondeza provinciana onde se tinha apenas duas novidades no dia: mais um ser ali havia nascido. E nascer, ali não parecia ser lá essa coisa muito fácil e vitoriosa, não.

A outra certeza logo seria noticiada na ordem do mesmo dia: a de que alguém, ali mais a frente das horas, logo morreria.

De resto era a vida que seguiria...dia após dia.

DO NASCIMENTO

Nasceu por decreto, como todo mundo nasce, sozinho e com a missão de enfrentar o mundo.

DA INFÂNCIA

Ainda menino, consta que já era ambicioso. Olhava o tudo com olhos de águia.

Ambição boa, talvez, daquelas que nos move a frente das necessárias, legítimas e justas conquistas. Aquela que nos personaliza para o ser.

Porém, conta-se que um substantivo, sempre precedido dum outro verbo ser no presente, lhe cravava os sentidos de criança: "fulano é o dono!", "fale com quem é o dono", ciclano deve ser o dono!" , "só sendo o dono para resolver seu problema!"

"Por que será que existia o tal ser dono para tudo?" "bom nessa vida mesmo deveria é de se ser o dono de alguma coisa!-pensava o menino- que então já resolvera, quase que por auto- decreto da necessidade de ser, que ele também seria...o dono.

Mas sentenciou a si: não seria assim um dono qualquer, seria o dono de tudo e de todos -o dono dos donos!-do possível e do impossível: seria ele um futuro ser dono do mundo!

Talvez, isso nunca fora contado ao entorno, tenha ele nascido num lugar onde pouco ou quase nada existia, portanto, sua ambição seria natural, todavia, difícil seria se ser dono de algo, então, ele acionou o sonho de ser ao menos dono de si para cuidar da sua promessa de ser o dono do resto...depois.

Parecia, embora ambicioso, ser de boa índole.

DA ADOLESCÊNCIA

Não existiu. Apenas trabalhou como e com o que pode sem perder o foco principal: ele queria de ser o dono. Não poderia se esquecer do seu desejo de ser.

DA VIDA ADULTA

Logo cedo, ainda jovem, seguiu o rumo da paixão, do amor, do casamento, da família. Parecia que já era dono do imensurável, mas aquilo era pouco, já que era só o que todo mundo tinha.

Ele queria mais: continuava querendo... queria ser o dono. Esse desejo lhe "empoderava" em ser...

Por algum tempo foi empreendedor de si mesmo, vendia de um tudo pelos balcões e faróis da cidade. Reciclava o que podia.

Fazia um dinheiro bacana, era inteligente, sabia que uma pequena quantia bem administrada lhe renderia futuro e, de fato, sua economia lhe permitiu tocar conforto à família e estudar. Chegou à faculdade.

Se formou. Arranjou um bom emprego. Virou líder.

Mas...embora já se sentisse o dono das pessoas dali, ainda não era "o dono!" do que sonhava ser.

Um dia descobriu o caminho do dinheiro fácil. Havia vários caminhos do dinheiro "sem dono", o dos ricos, que lhe poderia tornar...O DONO.

Falcatruou a vida! Os caminhos! Os direitos alheios!

Olhava só para si e para os "do seu sangue".

Tinha orgulho do sobrenome que carregava, parecia algo real da realeza, algo que até então, era apenas o que lhe pertencia ao ser.

Tinha apoio dos próximos que dele dependiam, sim, eram todos iguais, porque na vida, com o tempo , só os idênticos de índole permanecem juntos.

Esqueceu-se de todo o passado e de todas as mãos que lhe cederam alguma ajuda.

Acumulou e virou as costas. Pronto.

Um dia chegou em que, finalmente, tinha orgulho de dizer: "eu sou O DONO!". Era dono do que parecia ser e principalmente do que não parecia ser dele.

Sentia-se realizado no ter. Nem precisaria querer ter sido!

Ficou rico e avarento, portanto, continuou na pior pobreza de que se tem notícias.

Acreditava que tempo não existia e a velhice...ara, era uma coisa horrorosa, mas só para os outros. Afinal, ele era o DONO e aos donos haveria de ser reservado algum privilégio nessa vida.

Para os que envelheciam sem SER O DONO haveria um depósito terreno para o suporte dos ossos.

DA VELHICE:

O tempo voou sorrateiro e ele nunca entendera do que passa sem ser notado.

Nunca percebeu que mal haveria tempo de desfrutar o seu "status quo": o de ser o dono do todo. Acreditava mesmo, que era.

Estava lento no corpo e na mente. Nem se apercebia numa casa de repouso para idosos fragilizados.

Mas continuava ser o dono...do asilo.

Mandava, ordenava, dava as cartas aos castelos de areia, crescia na senescência que tudo decresce.

O corpo lhe caía, a voz lhe falhava, a mão lhe tremia, as pernas lhe bambeavam, a memória lhe traía...a força se esvaia ; mas nada disso era importante, afinal ele queria e conseguira ser O DONO.

Certo dia apenas balbuciou desconexo: "Mas...eu sou o...d o n o?"

DA MORTE:

Chegada sua hora, mesmo sendo O DONO, a morte lhe rendeu...dona suprema de toda a sua vontade e de todo seu patrimônio material.

Morreu sem nunca aprender que na vida ninguém é dono de nada. Nem do próprio tempo!

Aliás, nem o desfrutou o tão empreendido tempo para ser dono do que lhe fora apenas emprestado de fato; e logo cobrado lhe seria o que nunca lhe fora de direito.

Morreu sozinho e soberbo, com a intransigência dos donos às ordens naturais.

Morreu assim, como qualquer um que nasce e morre, mesmo sendo tão dono do nada.

Morreu se acreditando dono de algo sem nunca se dar conta do último ato dum destino inexorável: o de, mesmo sem ter sido ...ter que deixar de existir.

Nota da autora: é a vida que dá as notas às letras.