Obrigado Meu Deus!

(Uma pequena parábola, segundo um sonho que tive)

Um jovem casal, num vilarejo de antanho, vivia numa casa que, ano a ano, ganhava mais alegria com a redução do espaço e da vivenda.

Filhos vinham pela concessão de Deus e pelo ardor da paixão que unia o rapaz e sua linda esposa.

Após dois rebentos sirridentes e arteiros, o terceiro filho cresce rebelde e destoa de todos, com más tendências.

A vida flui com as lutas diárias e o filho-problema se fixa como desgosto aos irmãos, situação que se vai recrudescendo com os anos.

E os anos fluem silenciosos, como que ocultando tantos ciclos em as plantações receberam recomendações lunares.

Sob olhar tristonho, uma tolerância maior ao filho torto só mesmo pelo já não tão jovem casal.

A família se estende lateralmente e vêm os sobrinhos, primos.

Depois de lustros em fraudes e outros delitos, o filho de má conduta, recém-chegado aos 40 anos, termina morto sob tortura, pego em uma de suas falcatruas sob a ira de antigos desafetos.

A notícia traz grande dor ao casal e um misto de alívio aos demais familiares. Alguns dos sobrinhos, ainda pequenos, choraram muito pelo tio estranho mas brincalhão que se fora.

Toda uma vida assim perdida...

Três anos se passam e o antigo casal já se acostumara a viver só. Era uma grande família, mas daquelas que apenas de quando em vez, nas datas vermelhas, reunia-se com o carinho e os espinhos comuns do mundo.

Mas então, uma pequena cesta de vime, forrada com um pano sujo, trouxe à soleira do casal uma esquálida criança faminta, mal chegada a este mundo.

Logo o pequenino negrinho estava no colo solícito do velho casal, atônito em frêmitos de medo e dúvidas.

Eram outros tempos, a cidade pequena nem comunicava casos assim a quem fosse. Tampouco tinha amparo público para o recolhimento e destinação do rebento choroso.

Cenhos fechados logo cercaram o velho casal, obtemperando que não mais cabia na vida deles uma criança tão nova e, ainda mais, um negrinho...

Filhos, filhas, genros e noras, uníssonos na contrariedade indignada.

Algumas netas sorriam, tentando oferecer uma impedida ajuda.

Meses e meses...

A criança foi o pretexto de um maior afastamento de todos que, às ocultas, tanto sentiam-se cobrados pela vida enquanto davam os velhos como loucos, irresponsáveis.

E o tempo seguiu.

A criança cresceu e deu lugar a um garoto que era só sorrisos aos seus, tão seus, pais amoráveis.

Era o homem da casa, de tudo cuidando com esmero e alegria.

E assim, dedicado em tudo por fazer, terminou perdendo um dedo no serrote, ao retificar a cerca; perdeu um olho num prego que se estendeu demais numa tábua; perdeu parte dos cabelos com água fervente que, para o café, acidentalmente veio-lhe fogão abaixo quando ele ali estava, recolhendo sujidades abaixado.

Os momentos de dor e medo dos velhos ainda mais dava viço ao amor do rapazinho.

Eia vida chucra! O moço mantinha as rédeas da casa com o mesmo sorriso e carinho pelos pais, divertindo-se com o desespero deles por suas dores.

O jovem negro só se via com o olho mareado quando a idosa mamãe acarinhava-lhe a queimadura marcada e a pálpebra vazia. Assim era quase todas as noites, ao colocar seus velhinhos à cama.

Mas a vida guardava ainda mais um trecho de espinheiros.

Certa noite um desvalido ingressa à esquiva na casa, durante a noite, qual alarife disposto a tudo pelo furto de algo com o valor que tivesse.

O jovem negro, surpreso, correu ao desforço na defesa de seu lar.

Fez o larápio correr,

com alguns ferimentos. Ferimentos bem menores que a facada que abriu o abdômen do rapaz anunciando a inevitável morte em meio ao jorro de sangue.

Com o barulho e gritos os anciãos se arrastaram no socorro provecto que jamais chegaria a tempo.

A cena congelara eternamente aos olhos do tempo.

Com a cabeça no colo da mãe querida e sob o pranto desesperado dos pais, o jovem negro se viu em cenas que, estranhamente, reconhecia dentre ocultas lembranças.

Lembranças? Sim... Algo assim.

Viu-se homem branco, agindo à maldade sob o pedido de socorro de uma negra e prostituída vítima. Arrancava-lhe o dedo lentamente com um alicate.

Viu-se homem feito, de boa educação, que seduziu jovem fidalga para consumir-lhe o patrimônio com apostas e sórdidas noites ilícitas, até ver a esposa vitimar-se pela desesperança de um derrame que lhe apagou dos olhos qualquer visão.

Viu-se homem de vida torpe que, à sobra de uma chance de trabalho, fez-se capataz numa fazenda na qual procurava agradar ao seu senhor com ferros em brasa, no castigo de escravos por fúteis motivos.

E novamente viu-se ali... Exangue, no colo da mamãe sob o olhar desesperado do papai.

Compreendeu que os seus amados pais, ali com ele no fim, sem nada entenderem, receberam-no por força de tantas preces em fervor de Misericórdia ao filho torto e maldoso de que, segundo eles, não souberam bem cuidar...

Sorriu ao perceber que ao menos tinha salvo os tão amados pais.

O jovem negro, antes de fechar-se à vida, estertorou em seu último esforço:

:_ Obrigado meu Deus!!!

(Foi realmente um sonho... Anotei logo que despertei).