UMA HISTÓRIA DE AMOR
 
Introito:
 
A noite estava quente. O ar parado, sem que uma só brisa soprasse. O calor anunciava: essa é uma típica noite de um verão abrasador. Mais quente, contudo, estavam elas, “tipo assim”, passeando pelos becos, vielas, ruas, por sobre muros e telhados. Buscavam – ávidas, diga-se – a companhia de fogosos gatões. Sim, era isso que buscavam: Gatos! Gatos para saciarem o gritante e fogoso cio aflorado.

O mormaço da noite arrefecia o calor que a natureza fazia efervescer no âmago daquelas lindas gatinhas angorás. Peludas, cheirosas, conseguiram – com certa dificuldade, convenhamos dizer – driblar a rigorosa vigilância da zelosa dona, para, juntas, caírem na farra, na gandaia, partir para a balada!

A oportunidade singular surgira juntamente com o cio gritante no ego. É hoje ou nunca – lembrou-se Roxana de ter dito à sua amiga Teteia:
-Se vamos ter que “partir para a luta”, querida, terá que ser nessa noite. Oportunidade como essa (Ah, minha amiga!...) nunca mais! É agora ou nunca.
-Concordo! Aquiesceu a amiga, dando a Roxana razões para prosseguir com o voluptuoso e lascivo plano. No ato da concupiscência – e já antevendo os tão sonhados resultados – se lamberam e deram lânguidos miados. Lembraram que a tão zelosa dona havia esquecido aberta, uma das, sempre fechadas, janelas, facilitando, sobremaneira, a fuga. Deram miados e eróticos risinhos. É hoje, bela!... É hoje ou nunca mais! Rindo – e como se houvessem ensaiado – disseram em uníssono: - Vamos nessa que vai ser bom à beça!
-Tá bom, tá bom!... (Mais risinhos!) Agora, vamos à caça dos nossos gatos porque já não suporto mais tanto fogo, tanta ansiedade. Deram lânguidos miados; lamberam as patinhas e, passando-as pela cara, imitaram o ritual feminino de retocar suas maquiagens. Então, sentindo o quão bonita estavam, partiram para as conquistas.
 
Gatas na quebrada:
 
Andaram por um bom tempo e quando já estavam desistindo da busca, Roxana exclama:
-Uau! Uau!... Miau, miau, miau, miau!... Olha só, Teteia! Lá estão dois gatões solitários, dando sopa. Vamos nessa?...
-Claro amiga!... Vamos lá!... E nessa, lá foram elas.

Mas – e como “à noite todos os gatos são pardos” – somente depois da aproximação é que puderam ver a gritante diferença existente entre eles, os pretendentes. Um era, exatamente, o oposto do outro – a antítese! Pierre – era esse o nome do mais charmoso – era um Gato no mais amplo sentido da palavra. De pelos bem cuidados – cheirosos, brilhantes e penteados – trazia, adornando-lhe o pescoço, uma linda coleirinha da qual pendia uma placa onde se lia, além do nome, o seu “pedigree”. Possuía um miado aveludado, suave, empostado de vários erres a identificar a sua origem francesa. Tonhão – nome do outro gato – era um tremendo vira-latas. Vadio, liberto – brigão e valente –, se postava como sendo o dono da área. Ali, ele era “O Rei do Pedaço”. Nascera no lixão do bairro, e – ainda muito cedo – aprendera a dureza que é a luta pela sobrevivência. Com a vida aprendera que, para viver o amanhã, deveria peitar o hoje. Teria que, com a barriga, empurrar o mundo numa constante luta sem trégua, sem quartel, sem descanso – agora e sempre!

As Gatinhas, ao perceberem a tamanha diferença entre os pretendentes, resolveram confabular entre si. Precisavam decidir o: ‘quem ficará com quem?’
-Olha – dissera Roxana – aquele Gatão charmoso, cheiroso e gostoso, será para mim. E rindo, emendou: – Mesmo porque, fora eu quem os viu primeiro – concorda? Portanto, nada mais justo que eu fique com o melhor, o mais cheiroso e gostosão do pedaço.
-Está bem – concordou Teteia. Afinal, estamos no mesmo barco e a perigo, não é? E nessas situações, qualquer coisa serve. Vamos lá!... Vamos enfrentar as “feras” e seja lá o que Deus quiser!

Divisão feita, elas partiram para as conquistas. Rabões felpudos, empinados; os mais eloquentes ronronados; sensuais e roucos miados, assim, elas, deles se aproximaram. Roxana, colocando a patinha direita à altura da orelha, sacode a cabecinha e os cumprimenta:
- Olá, rapazes!... Linda noite, não?...
- É!... Legal, pacas! Respondeu – com voz grave e rouca – Tonhão, para, em seguida, botar para fora todo o seu quixotismo verborrágico ao avançar dizendo:
- E aí? O que fazem estas lindas, charmosas e gostosas gatinhas nestas ruas escuras e, ainda por cima desacompanhadas?
- Sabe?... É que... bem..., está um calorão danado, né? Daí, nós saímos para dar um rolê, um giro – dar umas voltinhas para conhecer a área, sabe?
- Hum, hum! Sei! Bem sei! Olha, mina, eu sou o Tonhão. Esse ai é o Pierre é (- Prazer! Disseram em uníssono as gatinhas!) o meu amigão. Peça fina – sacou?
- Eu sou Teteia e esta é a minha amiga Roxana!
Feitas as apresentações, Tonhão dispara a sua mais nova cantada:
- “Legalérrimo”, Gata!... E aí, “tás afins” de passear comigo? Conheço um telhado joia e de onde a gente pode sacar um luar “manero pacas”. Topas “dar um giro, um rolê por lá... topas?”.
- Topo! Assentiu a Teteia, encostando-se, toda lânguida ao seu fedido Gatão Tonhão, deixando a amiga Roxana a se entender com o afrancesado Pierre. E lá foram eles a ronronarem juras de amor eterno, por sobre os muros e telhados.
 
A quente noite de amor:
 
Algum tempo depois, uma janela se abre e dela se assoma a irritada figura de uma irritadíssima mulher:
- Gatos malditos, filhos da (%#¢£)!... Parem com essa zoeira danada, essa gritaria dos infernos! Quanto escândalo, pô! Ato contínuo, atira em direção ao forte alarido um pé de chinelo. De pouco adiantou. A festa do Tonhão e da Teteia estava no auge. Eram miados e rugidos que mais se pareciam com gritos humanos a gozarem os prazeres da carne em lascívia. Teteia estava chegando – mais uma vez dentre às inúmeras – ao Nirvana, o Paraíso de Eros!

Numa outra casa, um velhote nervoso, irado, revirou-se na cama soltando suas imprecações:
-Gatos desgraçados!... Toda vez é a mesma coisa. É só entrarem no cio para começarem com essa barulheira infernal, a todos perturbando.
Contrastando com a opinião do velho, a esposa carente entra em defesa dos Gatos:
-Pelo menos, eles estão fazendo amor, não é? – dissera! Aliás, amor é coisa que, de há muito, não se faz nessa casa. E dando vazão ao seu repúdio – e em defesa dos Gatos – abriu a janela e aos berros, vociferou:
-Vamos nessa, gatinhos! Manda brasa “gataiada”! Manda ver! Gozem à vontade, danadinhos!
O velho, fazendo ouvido de mercador, virou-se de lado, dormiu ou fingiu que dormia.
 
Epílogo:
                                                      
Amanhece o dia! O sol começa a desvirginar a escuridão empurrando-a para o outro lado do mundo. Por trás das cacundas das montanhas já se denota um forte colorido mesclado pelo tom vermelho-alaranjado, anunciando o alvorecer de um novo dia.

E os primeiros raios do sol vão encontrar a Teteia totalmente despelada, língua pra fora, olhar rútilo e boca trêmula. O seu andar é trôpego, vacilante. As pernas, semiabertas, mal conseguiam sustentar o arrasado e despenteado corpo. A cara de sono demonstrava que não dormira durante a noite inteira. O cansaço, contudo, não conseguia esconder a enorme cara de incontida felicidade nunca dantes experimentada, como a daquela noite de amor ao lado do fedido Gatão Tonhão. Sua face felina era – tão somente, diga-se – uma máscara de felicidade, de um amor nunca vivido, de prazeres nunca dantes sentidos, de gozos nunca dantes desfrutados. Estava rouquíssima de tanto miar durante as folias ao deus Eros.
Encontrando-se com a amiga Roxana, comenta:
-Minha amiga, não te conto nada (Mas, e entre desavergonhados risinhos, contou!): Aquele Gato é um louco varrido. Eu estou (Ufa!) “morrrtisssííííssssiiimaaa”! Fizemos amor (Hum!... Ai, ai!) a noite inteirinha! Teve um momento, amiga (E a Roxana a tudo – impávida e com cara de poucos amigos – escutava!) que um pé de chinelo passou voando, zunindo perto das nossas cabeças, indo explodir numas telhas ao nosso lado. Nós nem ligamos, sabe? (E a Roxana – com raiva, calada, tensa – a tudo ouvindo!) A mulher, dona do chinelo, estava possessa. Olha minha amiga, vou te contar: se depender do número de vezes (Com a patinha direita tenta tampar a boca para esconder uns risinhos sem vergonha.) que fizemos amor, dentro de mim deve ter – no mínimo – uns trinta gatinhos. Ufa! Estou morrrtaaa!

E você? Como foi a sua noite de amor com o... Pieeerrre? Tudo bem? Ele é, também, um (digamos) gostosão e doidão varrido igual ao meu fedido Tonhão? – quis saber!

-Ah, minha amiga!... Nem te conto. Eu, também, não dormi nem um segundo nesta noite finda. O Pierre passou a noite inteirinha contando a sua triste história do dia em que ele fora capado.
 
Altamiro Fernandes da Cruz
Altamiro Fernandes da Cruz
Enviado por Altamiro Fernandes da Cruz em 19/06/2020
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