Eu sou a mosca que pouso na sua sopa

Na fazenda de seu Afonso, em Boa Esperança, Minas Gerais, vivia uma mosca muito esperta e ágil, conhecida pelo nome de Hybris. Ela se destacava perante os outros animais, haja vista ser a única que sobrevoava o interior da residência do dono, mesmo nos horários das refeições. As suas companheiras a idolatravam por tamanha audácia e, rapidamente, a elegeram como a líder do grupo das moscas.

Hybris fez amizade com todos os animais da fazenda, incluindo os temidos morcegos chupadores de sangue. Era constantemente convidada para as reuniões dos cavalos, tendo até o direito à palavra e ao voto acerca das matérias debatidas.

Conta-se que Hybris, em dia não especificado, instigada pelo cheiro de comida que exalava da casa de seu Afonso, resolveu sobrevoar a mesa do jantar no intuito de descobrir se era bem-vinda à família. Precavida, pousou longe dos humanos e apenas os observou. Segundo narrado por um dos cavalos, o Raul, a quem Hybris havia contado a história, ela havia percebido que os humanos a notavam com os “olhos cheios de amor”. Por conta disso, ela concluiu que desejavam a sua companhia. Foi-se embora irradiante contar a novidade ao grupo de amigos.

Hybris passou então a frequentar a casa de dentro – expressão utilizada pelas suas amigas moscas – todos os dias, nos horários das refeições. Procurava sempre ficar próxima à pequenina Juju, neta de seu Afonso de dois anos de idade. Hybris adorava escutar as risadas sinceras da criança e ver a bagunça que aprontava no horário da “papinha”. Com o tempo, decidiu pousar nos ombros de Juju, que não demostrava nenhuma aversão à mosca aventureira. Raul, ao contar as façanhas de Hybris aos amigos equinos, frisou que a menina realmente tinha carinho por ela, já que não se importava com o fato de se lambuzar da papinha ao mesmo tempo em que Juju nutria o alimento.

Com o tempo, a destemida Hybris passou a ignorar os animais da fazenda, principalmente suas companheiras moscas. Quando era convidada para algum evento animal, a exemplo do famigerado voo pelo pasto, recusava o chamado ao argumento de que preferia frequentar a casa de dentro. A mosca gostava de mencionar que na residência os jantares eram sofisticados. Dizia, ainda, que as conversas dos humanos eram extremamente inteligentes. Na sua visão, os animais eram simples demais. Desse modo, Hybris chegou à conclusão de que precisava mudar de turma para evoluir e, quem sabe, ser vista como um ser humano no corpo de mosca. A princípio, os seus amigos se entristeceram com o desdém de Hybris, mas, logo em seguida, enxergaram a evolução da amiga como positiva, uma vez que os humanos passariam a respeitar não só a mosca aventureira, mas, acima de tudo, os demais insetos. Assim, Hybris recebeu o status de heroína e modelo a ser seguido pela bicharada da fazenda inteira.

Um belo dia, quando os moradores da fazenda comemoravam o aniversário do seu Afonso, Hybris pousou como de costume nos ombros da pequena Juju. A criança estava sentada em sua cadeirinha esperando a sopa que seria servida pela mãe. Os humanos riam enquanto saboreavam um delicioso porco assado, ao mesmo tempo em que bebiam vinho e cachaça. Uma dupla sertaneja tocava os clássicos do gênero para animá-los. Todos cantavam e dançavam. A felicidade dos humanos contagiava a nossa heroína, que se sentia uma privilegiada por pertencer a uma espécie tão distinta. Enfim, havia chegado o dia em que se tornou humana, de acordo com o seu entendimento.

Hybris permaneceu nos ombros da Juju enquanto a sopa era servida pela mãe. Como a criança não sabia manusear a colher, o alimento era levado até a sua boca com muito cuidado. A mosca observava a cena com uma segurança de dar inveja. Por se sentir acolhida pelos humanos, não havia motivos para temê-los. Foi então que Hybris decidiu dar um mergulho na sopa para saboreá-la, pois estava faminta. Enquanto se deliciava com a iguaria, a menina percebeu a existência do inseto nadando na comida. Neste momento, pegou a mosca com as mãos, que tentava desesperada fugir em vão, e engoliu-a sem que ninguém percebesse. Deu um sorriso e continuou tomando as colheradas da sopa servida por sua mãe.

Terminada a festa, todos os animais da fazenda aguardavam ansiosos a chegada da heroína, a fim de lhe prestar as homenagens pelos seus feitos. Até os horrendos morcegos chupadores de sangue estavam entre os bichos à espera de Hybris, que, como visto, tinha desaparecido. Muito se falou sobre o seu sumiço. Alguns diziam que ela teria se tornado uma pessoa. Outros falavam que tinha morrido espremida por um matador de moscas. E havia também quem achasse que ela tinha simplesmente ido embora da fazenda. Não importa o que dissessem, a verdade é que Hybris estava morta e a única pessoa que sabia de seu fim, a pequena Juju, não se recordava mais da sua breve existência.

João Matos
Enviado por João Matos em 18/05/2020
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