A imagem pode conter: 2 pessoas, incluindo Adalberto Antônio de Lima, pessoas em pé, árvore, chapéu, óculos de sol, atividades ao ar livre e natureza
A  noite desce sem luar e sem  estrelas;  tinge  o céu com o negrume da escuridão,  e tece o cenário dos heróis do medo.  Temendo, o próprio medo treme e cambaleia.
A boneca Mary Emily fica imaginando  como será o homem que cada menino constrói dentro de si, a partir da interação com brinquedos monstruosos. Ela já não gosta  mais dos filmes de terror, e vez por outra, acorda de sobressalto, por causa de  pesadelos habitados por criaturas diabólicas, que outrora, via na TV.
 E, pela primeira vez, a boneca de pano desejou ter nascido gente, ser uma rainha, com muitos súditos e um grande exército para combater os monstros que lhe perturbam o sono. 
Abriu lentamente a tampa da caixa em que dormia e descobriu que Ravenala havia acendido o abajur.
— Durma Emily! Amanhã teremos um dia muito atarefado.
— Não consigo  dormir! Queria ser como Robert  que não tem medo de nada.
— Os homens escondem seus medos, quando estão diante das mulheres. Faça  o teste: quando Robert  disser que não tem medo, olhe os lábios dele. Se tremerem, ele está mentindo. 
— Não são mais os olhos a janela do coração? — quis saber a boneca.
— O rosto é  o lado externo do coração; os olhos, ambos os lados; mas são os lábios que escondem ou revelam a verdade.
Teve vontade de dizer que o coração do homem modifica seu rosto, para o bem ou para o mal. Assim, não podem ser do Bem os brinquedos com faces diabólicas.  Então,  pensou em produzir bonecos à imagem e semelhança de santos.  Deste modo, as crianças sonhariam com anjos, e não com demônios fazendo diabruras em suas mentes. 
— Não consigo dormir! Insiste a boneca Mary Emily. Cante uma canção de ninar!
Ravenala cantou:
— “O cravo brigou com a rosa, debaixo de uma sacada, o gravo saiu feriodo, e a rosa despedaçada...”
— Está é violenta! Não é de ninar.
— Então conte carneirinhos... Conte assim: “um carneirinho... dois carneirinhos, três carneirinhos pulam a cerca. Quatro carneirinhos...”
A boneca iniciou a contagem, mas o sono não veio.
— Já  contei 99 e ainda não dormi.
— É porque uma ovelha desgarrou-se! Não dormirás, enquanto não encontrares a ovelha perdida.
— Vou tentar mais uma vez.  
E recomeçou a contagem:  “Um carneirinho... dois carneirinhos... três carneirinhos...
Minutos depois, Mary Emily aquietou-se como quem procura reconciliar-se com o sono e não conseguia. Era preciso reconciliar-se primeiro com sua própria história. Emily era uma boneca de pano e queria ser gente de carne e osso. — Queira ser você mesma — murmurou seu coração.
 Ela ainda estava em franco diálogo com seu “eu” interior, quando a silhueta  quase apagada de uma porta, sem trinco, mostrou-se  semiaberta.
Temeu, mas entrou.
Era um túnel imenso. Parecia infindo.
Andou  como que às apalpadelas e não sabe quanto  tempo levou até dar em um salão. Nele havia uma porta formada por uma nuvem de fumaça que subia e descia girando sempre  da direita para a esquerda. E ao transpor aquele aparente obstáculo,  Emily estava em campo aberto.
Neste ponto, viu o anjo das trevas cobrir a terra com sua sentença de morte. Viu vultos informes passando velozes como sombra fugindo da luz.
Extasiada, e prestes a perder, totalmente, a consciência,  ouviu  o  tinir de espadas da corte celeste em luta contra as forças do mal. De repente, uma chuva de estrelas cadentes criava imagens muitas vezes mais belas do que qualquer show pirotécnico produzido pelo homem.
 Logo, um tremor delicioso a fez estremecer em espasmos beatíficos,  a boneca sentiu a sensação de que flutuava a alguns palmos acima do chão. Num piscar de olhos,  seu pequeno corpo alçou voos arrojados. Visitou vários asteroides habitados por seres celestes que entoavam cânticos ao Criador. E só depois de muitas horas, retornou ao planeta Terra.
O dia era quase amanhecido.
Os primeiros raios de sol tocavam, acanhadamente, o topo do Corcovado de onde o Cristo Redentor saudava a Cidade Maravilhosa com  o magnífico  abraço de pai.
— Acorda, Emily! Já é dia!...
Sem obter resposta, repetiu duas ou três vezes a saudação matinal: “Bom-dia!”
A caixa  em que a boneca dormia, estava fechada.
Ravenala levantou a tampa com cuidado. Emily estava  fria e não tinha pulsação.
— Vovó, vovó!...
— Que houve, minha filha?
—  Mary  Emily morreu!
— Bonecas não morrem. As meninas  crescem, e guardam suas bonecas no armário.
— Emily morreu. Quero um velório com todas as honrarias que ela merece.
A avó entendeu que era  necessário penetrar no mundo das crianças, para compreender o recado que elas mandam aos adultos nas falas e diálogos estabelecidos com suas bonecas. 
Era hora de guardar a boneca de Ravenala, como ela, Corina,  guardara a sua quando ficara mocinha.