O carro e os chimpanzés
Certa feita, numa terra não muito distante daqui, um grupo de pesquisadores criou um par de chimpanzés em ambiente confinado, por uma razão muito especial (cujos detalhes não são de total conhecimento do autor que descreve estes fatos). Ambos eram machos, adotados recém-nascidos, e foram batizados com os codinomes “Alfa” e “Álefe”. O objetivo da empreitada era um estudo científico bem patrocinado e de longo prazo que visava treinar os animais no manejo do volante. Por conta disso, desde tenra idade, a vida dos macacos se resumia a aulas de direção. Com esforço, pesquisa, método e muita dedicação da equipe de cientistas, os resultados tornavam-se formidáveis, com a dupla de primatas ficando exímia na condução. Num veículo adaptado à sua fisionomia, davam voltas e voltas com desenvoltura digna de inveja a uma grande parcela dos motoristas humanos. Não importava a configuração variada dos cones, placas, obstáculos e rampas: conforme cada exercício específico no amplo laboratório subterrâneo, os bichos davam conta do recado e arrancavam cada vez melhores notas da ponta da caneta dos avaliadores.
Num dado dia, após anos de exaustivos testes, a equipe de pesquisadores retirou-se por algumas horas, mas, desta vez, sem trancafiar os dois espécimes na jaula. Como se comportavam muito bem no estudo, os cientistas acharam que o par seria capaz de ficar livre e à vontade no pátio interno desnudado de qualquer artefato, à exceção do lustroso veículo de teste. Nunca antes os animais puderam ter esse momento solo com a máquina que dava sentido às suas existências, e seus olhos se enchiam ao poder contemplar com minúcia, sem pressa, cada detalhe: o reflexo níveo das potentes lâmpadas fluorescentes do laboratório refletido na lataria brilhante, mantida sem qualquer arranhão pela perícia da dupla; o cheiro dos plásticos internos e a textura suave dos bancos de couro; a luz eletrizante das lâmpadas do painel e das lanternas e faróis externos; a complexidade de cabos, mangueiras e conexões do motor… Enfim, o carro passou por um cuidadoso - e, por que não dizer, até amoroso - escrutínio dos símios. Defronte o capô aberto do belo automóvel, um pôs-se a falar ao outro:
(Álefe): É uma máquina e tanto, ein Alfa.
(Alfa): Nem me diga, Álefe. Veja como tudo isso é complexo.
(Álefe): Pois é. Imagine só o trabalho que a montadora deste carro teve para fazê-lo.
(Alfa): Montadora?
(Álefe): É… Montadora. A empresa que criou o carro.
(Alfa): Não acredito em montadora. — Alfa disse. Perplexo, Álefe, o chimpanzé que iniciou a conversa, voltou-se na direção do outro e pôs-se a indagá-lo:
(Álefe): O que você quer dizer com isso, Alfa?
(Alfa): Ora. Que não existe montadora.
(Álefe): Mas… — Sem esperar uma réplica, Alfa, em tom professoral, pôs-se a explicar seu ponto de vista ao colega:
(Alfa): Amigo, você já viu essa tal “montadora”? Bom, nem precisa responder, pois tampouco eu a vi. Você já andou pela totalidade do laboratório, foi levado para lá e para cá pelos humanos, e em nenhum lugar a viu.
(Álefe): Bom… Acho que o carro veio de algum outro lugar, fora daqui.
(Alfa): Como assim?
(Álefe): Um lugar… Do lado de fora. — Esse palpite de Álefe arrancou uma gostosa gargalhada de Alfa, que até caiu de costas no chão. Levantando-se corado de tanto rir, Alfa passou a mão na grande barriga peluda e dirigiu-se ao amigo ofendido por ser tão grosseiramente ridicularizado:
(Alfa): E você acredita nisso? Num tal “lado de fora”? E na tal da “montadora”?
(Álefe): Sim! Ou você acha que tudo se resume a este laboratório, essas paredes, esse carro e esses humanos?
(Alfa): Claro! Se houvesse mais do que isso que podemos ver, cheirar, lamber e tocar, não acha que já não teríamos tido alguma espécie de contato? De sinal?
(Álefe): Hum… Eu já vi o mecânico da montadora vir aqui arrumar o carro noutro dia. Lembra que uma vez o teste de baliza foi interrompido porque estava vazando água do radiador? Pois bem, da fresta da minha jaula eu vi o mecânico vir aqui, com uma roupa diferente, em peça única, com um símbolo estampado nela igual a este que está na grade frontal do carro…
(Alfa): Deixe de ser burro, meu amigo! Como alguém arrumaria o carro? — Indignou-se, Alfa. Álefe continuou:
(Álefe): Lembra-se que no dia seguinte o carro não vazava mais? Foi ele quem arrumou!
(Alfa): “Montadora”, “lado de fora” e, agora, “mecânico da montadora”! Você é um fanfarrão! Deixe-me explicar: esse carro se arruma sozinho, assim como nossas feridas. Você já viu alguém vindo cicatrizar sua pele para você? Aposto que não! E olha só: não existe montadora. Esse carro surgiu aqui mesmo, antes da gente nascer. Lembra que éramos filhotes, e ele já estava aqui? — Alfa falava com maestria, e Álefe o escutava imerso em indignação manifestada em gestos no ar com os braços. Sem perder tempo, replicou-lhe:
(Álefe): Amigo, sei que você é inteligente, portanto lhe digo: o fato de não vermos a montadora e o lado de fora, bem como seu descrédito acerca da existência do mecânico da montadora, com conhecimento para arrumar o carro, não são motivo para que você invalide tudo isso! E, se minhas teses soam absurdas aos seus ouvidos pela simples falta de percepção de sua parte, observe então as evidências de que dispomos! Olhe só justamente toda essa complexa rede de cabos, fios encapados, mangueiras e peças do motor: você acha mesmo que isso tudo se formou, assim… Do nada?
(Alfa): Do nada, não, amigo. São formadas de matéria, assim como nós, os humanos, as paredes, as grades de nossas jaulas e tudo o mais… Após refletir bastante, acredito que o carro foi formando-se aos poucos, com as peças surgindo da interação da matéria… Olhe só como cada peça é individual, e que só mantêm conexões entre si. Todas elas se uniram para formar algo melhor, maior, mais adaptado e capaz ao meio…
(Álefe): Não creio nisso. Acho que tudo isso foi criado pela montadora. Não é possível que algo tão bonito, eficaz e complexo tenha, assim… Surgido do nada! Não há como o “tudo” surgir do “nada”!
(Alfa): Já te disse que não veio do nada… Veio da matéria, interação, junção das peças, adaptação ao ambiente…
(Álefe): Bom, você me entendeu. Não creio que tudo isso tenha surgido ao acaso. A montadora tinha uma intenção em fazer o carro, e ele tem uma finalidade. Senão… Por que existiria? Por que essa complexidade toda surgiria? Para nada? — Finalmente Álefe encaixou uma questão que deixou Alfa realmente confuso. Coçando a cabeça, esticou os lábios em gesto de dúvida e arriscou uma proposição:
(Alfa): Bom… isso eu não sei explicar. Mas me parece mais plausível isso do que o que você acredita. Intenção, finalidade… Nada disso me convence. Acho que o carro existe e pronto. É só o que podemos ver. Ele anda para a frente, dá marcha ré, vai para um lado e outro, sobre, desce das rampas… Somente. É só o que vemos e vivemos. Aceite este fato, amigo.
(Álefe): Seus argumentos são bons… Mas não se baseiam em nada mais do que ilações muito particulares de suas observações. Ver como algo funciona não diz o porquê nem para o quê ele foi feito. Acredito que sim, as coisas têm finalidades. Esse carro tem uma finalidade, que é justamente isso que você disse: ir para frente, para trás, para um lado e outro, cima e baixo, etc. Senão… Não seria sensato sequer que ele existisse. Seria uma existência vazia de sentido. Assim como nós: nossa finalidade é dirigi-lo bem. Acredito que algo maior surgirá através dos nossos exercícios e do desempenho deste carro. Algo maior… Lá do lado de fora.
E, enquanto os dois símios balbuciavam e gesticulavam um para o outro, mal desconfiavam que por detrás do vidro escuro que dava para a iluminada sala, a equipe de cientistas os observava e tomava nota do seu comportamento perante o automóvel. O presidente da montadora, ali presente em pessoa, sorria satisfeito. O estudo ia se saindo bem. E deve estar indo bem até hoje, pois ainda permanece em curso e sem previsão de fim. Mas, caro leitor, ainda não sei muito a respeito do que este estudo se trata. Espero que perdoe o desconhecimento deste humilde escritor.