O escriba
Não há uma moral da história. Há apenas o se narrar. E a gente se narra pra se conhecer. Ou pra inventar coisas pelas quais gostaríamos de ser conhecidos. No fim, escrever é como um fiat primevo, um axis cosmos, que nos sustenta enquanto nos relacionamos com as miríades de coisas que vão nos significando enquanto seres dotados de subjetividade.
Era uma vez, portanto, um escriba que de tanto escrever, desaprendeu a falar. Não que ele não soubesse emitir sons significantes... Mas o barulho dos fonemas o amedrontavam a tal ponto que ele preferia não pronunciá-los. Era um asceta do som. E o ruído irritava a harmonia dos seus pensamentos tão organicamente enquadrados. Como se a palavra posta sobre as folhas do pergaminho constituíssem elementos alquímicos que a qualquer momento se tornariam em ouro luzente. E ele via os objetos relacionados adquirindo vida própria. Como o P e o A se tornavam Pá e deixavam de ser coisas isoladas e passavam a ser aquilo a que designavam.
Se espantava ao perceber como o amor era mais belo nas qasidas andaluzas e o escárnio mais ferino nas cantigas de maldizer... O som se tornara desnecessário. A palavra soava direto na sua alma e ali criava um mundo próprio. Até a lembrança de si mesmo agora era produto da grafia. Se não estava escrito, não era lembrança... Era ilusão.
E a tanto chegou nesse seu afã, que as pessoas ao seu redor passaram a chama-lo de o Orador mudo. Seus discursos eram lidos em praça pública com reverência, levando os velhos sábios ao espanto e as mulheres ao choro compungido. Até as crianças se calavam quando chegava um novo escrito. Porém ninguém ouvira um ai dele.
E a medida que o tempo passava, o escriba se afastava cada vez mais do mundo real. A ponto de só se comunicar por escrito. E olhe lá...
Até que um dia o conselho de notáveis da cidade decidiu deliberar sobre isso. É bem verdade que o Orador mudo orgulhava a cidade e a Ummah, mas o silêncio se tornava cada vez um fardo maior a ser carregado. Começou a correr um boato de que um jinn roubara sua língua em troca do dom de ornar as palavras. Outros diziam que era o próprio Shaytan quem possuía seu corpo para que o Orador desviasse os crentes do salat e assim esquecessem de Allah e de seu Profeta.
Desta forma, conselho decidiu se reunir e ir ter com o escriba. Foram até sua casa e foram atendidas pela escrava egípcia que lá habitava. Disseram que queriam falar com ele e que era de suma importância que ele viesse.
- Mas pra quê? – perguntou a escrava – Ele se recusa a pedir o básico.
- Exatamente por isso precisamos falar com ele – respondeu o mais velho.
A escrava subiu para a alcova do amo para chama-lo. Entrou sem fazer barulho e escreveu um bilhete em mau árabe contando-lhe a situação. Ao que o escriba respondeu com um bilhete: “não preciso vê-los para responder, escrevam-me e isso me será real”.
Você que me leu até aqui sabe o motivo da recusa. Mas nada fere tanto a honra do que faltar com a hospitalidade. O Conselho ficou extremamente enfurecido com a situação. Decidiu sair e se vingar da desonra sofrida. Foram até o Califa e pediram que suspendesse o fornecimento de pergaminhos ao Escriba sob a escusa de que um Jinn o atormentava.
O pedido foi prontamente atendido pelo Califa, e o homem viu a cada dia diminuir seu estoque pergaminhos. Até que chegou o dia em que nenhum mais lhe sobrara. Todos estavam escritos. E o que fazer com aquele mundo interno que insistia em continuar crescendo? Foi então quando teve a ideia que mais lhe doeu na vida: a de raspar os pergaminhos velhos e escrever por cima novas palavras.
Pegou o mais antigo e prontamente o pôs sobre a mesa. Porém antes de iniciar seu trabalho seus olhos passaram sobre aqueles relatos de muitos anos atrás e leram, aqui e acolá, fragmentos de uma vida que ele deixara ali. E imaginou sua mão destruindo aquilo tudo. A casa paterna. O afago de sua ama de leite. A tamareira. Sua primeira recitação do Nobre Alcorão... Subitamente sentiu uma angústia tomá-lo. Destruir aquilo seria como um saque mongol, seria perder-se de si mesmo. Não! Não dava. ‘Audzubillahi [Deus me livre].
E se ele reescrevesse aquele relato, ornando melhor as palavras, dando mais brilho, mais nur? Poderia deixar toda aquela história mais bela, mais cheia de cores. E quem sabe omitir coisas desagradáveis. Sim! Isso seria recriar, reformar esse mundo sagrado. Não seria mais “a casa materna”, mas “a saudosa e doce casa materna onde o vento balançava as tamareiras e o azhan chegava imponente pelas janelas”. [De onde ele tirar a esse azhan?]
Não seria mais apenas o “poço”, mas “o poço onde todos os dias Zainab se sentava e recitava uma qasida doce e suave”. E assim o mundo ia adquirindo novas cores e formatos. Estava decidido. Para não perder o mundo, ele passaria a ampliá-lo.
E foi assim que começou um ciclo sem fim. Toda vez que ele terminava de reescrever sua memórias, ele as apagava e as reescrevia, pergaminho a pergaminho. E a cada nova escrita, novas coisas eram acrescentadas. Novas cores, novas lembranças. Novas palavras... E assim os anos foram se passando.
Suas mãos não conseguiam mais segurar o cálamo e sua vista já não era a mesma, por graça de Allah, não ficou totalmente cego. Porém se somos Dele, a Ele tornaremos. E o escriba sabia que seu tempo estava chegando.
Até que um dia caiu enfermo. Pela primeira vez em anos chamou para si a sua escrava, a mesma que estivera junto a ele durante todo esse tempo e ordenou-lhe por escrito que enterrasse os pergaminhos em vasos de barro e lhe declarou que a partir desse dia ela estava liberta. A ex-escrava chorou e lhe entregou um grande pergaminho que ela guardara desde sempre.
Era o primeiro diário do escriba. Então a ex-escrava falou:
- Morrer também é um momento da vida.
O Escriba pegou confuso aquele pergaminho e começou a lê-lo, e à medida que ia lendo, seus olhos se enchiam de lágrimas e sua febre ia aumentando até que começou a gemer e prantear, mas com um pranto tão compungido que a serva simplesmente perguntou:
- Que se passa, meu senhor?
Então a voz do escriba se fez ouvir:
- Eu não conheço este homem.
A agonia durou mais algumas horas... Mas as palavras ainda eram as mesmas.
“Eu não conheço este homem”.
Tiago da Silva
Suzano, 5 de dezembro de 2019