GADO, DEMASIADO GADO

I

Naquele dia, o rebanho estava calmo. Incrivelmente calmo! Vi o gado como nunca havia visto. Estavam todos quietos, silenciosos, atentos a alguma coisa em sua frente. Mugiam entre si, comentavam sobre assuntos cotidianos. Enquanto isso, uma espécie de gado mestre mugia para eles palavras de sabedoria, como, por exemplo, ensinamentos de como comer uma boa grama.

Esse boi, que era o mais chifrudo dentre todos os presentes naquele curral fechado e pútrido, tendia a mugir como um profeta. Todo o gado o seguia. Ele era como o novo vaqueiro da fazenda, uma espécie de líder. Os gados eram todos enumerados com um marcador, porém, o grande mugidor ficou marcado com um especial: na época em que foram marcados, faltou uma etiqueta; o dono do sítio, com preguiça de ir atrás de um novo, arranjou um panfleto em sua casa escrito "Dom Quixote" e prendeu-o ao bicho. Graças a tal, fora apelidado pelo mesmo nome em que havia no seu marcador. Este gado, um tanto quanto diferenciado, indicava, tudo sugere, ser de uma raça diferente dos demais. Talvez isso explicasse um pouco do seu comportamento dissonante em relação aos demais do rebanho. Ou talvez não; talvez tenha sido apenas sua criação diferenciada no cerrado do Mato Grosso, onde fora criado como bicho doméstico por uma família de holandeses que o adquirira num leilão de bovinos de raça — talvez tenha sido isto.

Dom Quixote não era o louco, como seu nome sugere. Loucos eram os que o escutavam, que o davam atenção. Um diferentão, no meio de tantos iguais. Muitos, no lugar de o ignorar, davam-lhe grande atenção, como se aquele fosse digno de tal. E quem sabe, fosse mesmo...

Houvera um dia em que Quixote parou, bem no meio do curral, que naquele dia estava turbulento, e mugiu, mas mugiu de forma excêntrica, levantando o tom do mugir:

— A grama está verde!

"Como assim, grama verde?" — tal foi o pensamento que circulou na mente de todos aqueles que o ouviram. Pararam com a turbulência simplesmente por ouvirem tais palavras e quererem entender...

Grama verde? A grama é verde... mas está verde?

O gado ao seu redor ficou confuso. Era assim que reagiam quando algo anormal ocorria — basicamente, toda vez que Dom Quixote pronunciava-se com voz alta. Prestavam atenção na coisa mais simples que dizia, se este o falasse de forma direta e concreta. O ouviam e refletiam sobre o que saía de sua boca. Era o profeta. Mas o profeta, às vezes, do senso comum, das coisas óbvias. Vez ou outra que falaria algo decente: "O filho do vaqueiro morreu". Mas a estas coisas, ninguém dava atenção — pois não havia, em sua fala, alguma entonação, que a eles fosse chamativa.

— Então por que tamanho alvoroço?! — questionou o boi. — Acaso não tendes comida suficiente? Então, por que reclamam de barriga cheia?

O rebanho, repentinamente, silenciou-se. Silenciou-se como um estádio de futebol no momento em que o jogador chuta a bola na marca do pênalti.

II

Dom Quixote, que aparentava, até então, ser só mais um na multidão com forte entonação que chamava atenção, pôs a todos um questionamento. Tão assim, do nada, parecia como um verdadeiro profeta, ou um filósofo de alto patamar, num nível extraordinariamente diferente daqueles que o cercava. Ninguém, contudo, refletiu sobre tais palavras; com exceção de um recém-chegado ao curral: um gado proveniente das pampas do sul (guri de uruguaiana tchê!), que, assim como Quixote, também fora adquirido em um leilão.

— Esse é de raça boa... Nelore!! É arroiado de saúde, di vera! — dizia seu dono, orgulhoso da nova aquisição, feita através do canal do boi.

O dono, vendo o sulista como um especial e um orgulho ao seu curral, decidiu dar-lhe um nome, como gesto carinhoso: Caudilho, predestinando que seria chefe entre todo o gado ali presente, como faziam os poderosos caudilhos do sul.

Podemos dizer que Dom Quixote era o conformado, que reclamava, falava mas nada fazia; apenas um falastrão, com tamanha voz cativante e imponente para ater o foco do gado a si — o que até funcionava, da mesma forma que um político demagogo consegue seus votos a cada 4 anos e se elege, mesmo sem nada fazer. Dom Quixote não tinha virtudes, apenas um desejo podre e medonho por influência dentro do curral; no fundo, desejava apenas aparecer no topo. Sua arma, a oratória, um tanto sofisticada para um gado, servia-lhe bem para este fim. Caudilho, por outro lado, não era tão despojado de oratória, porém detinha um espírito de fato questionador e de fraternidade; via a todos como iguais a ele e queria o melhor para seus companheiros. O gado do sul, ao chegar naquele curral, concordou e se interessou pelo questionamento que havia sido feito por Quixote, que, à primeira vista, pareceu-lhe sensato em suas colocações. Sua decepção, contudo, foi ao ir atrás do mesmo para trocar ideias e, para sua surpresa, recebeu, como resposta do rei do gado, uma exclamação forte e arrogante:

— Sou Dom Quixote! E somos todos gado! No final, nada disso importa! Então, não gaste teu tempo com balelas, coma tua grama, que ainda está fresca, e deixa-me em paz.

Caudilho frustrou-se. Como um menor aprendiz na entrevista de emprego. Ou uma criança que descobre que papai noel não existe. Chocou-se com tamanha desilusão. Pensou — como pode ser esse o líder deste rebanho tão plural em pensamentos... um gado como ele que despreza a discussão de ideias...?

III

Caudilho ouvia muito as conversas fora do curral, entre o dono da fazenda e alguns de seus empregados. Ouviu sobre uma máquina de abate que, às falas dos humanos, parecia muito eficiente.

— Máquina de abate? Que é isso? — pensou o inocente gado.

Escutou, brevemente, que todos ali no curral seriam transformados em produto para consumo. Em massa, ele ouviu! Seriam todos abatidos em massa...

— Ainda não sei o que é abater... — lamentou o inocente gado.

Preocupado, tentara comunicar-se com outros bois e vacas. Para sua tristeza, nenhum de seus companheiros o respondeu; estavam todos ignorando-o, talvez por pedido do chefe, Dom Quixote. Mas, certa tarde, perambulando pelo curral, ainda coçando a cabeça sobre o verbo "abater", à beira do curral apareceu-lhe um nobre, de cabelos louros e músculos preponderantes, cavalo inglês, de cavalgada elegante e imponente, que introduzira a si mesmo como "Allan Poe, o corredor". Extasiado com tamanha beleza, Caudilho ficou alguns minutos, meio que paralisado, observando-o, quando, só então, resolveu aproximar-se e iniciar um diálogo:

— Sou Caudilho, o sulista. Estou confuso. Acaso saberias responder-me o que é abate? — pergunta ao nobre cavalo inglês, com um mugido fraco e tímido.

— Vós não sabeis o que é um abate? Pois, então, prestai atenção em minhas palavras, mero bovino. Contarei-te a definição exata do que é um abate. — exclamou vorazmente o nobre cavalo inglês, prosseguindo a explicar — Abate é o porto final nesta finita navegação em que vivemos. O ato de finalizar a fiel vida de um animal, nobre ou plebeu, para levá-los todos a um mesmo fim: a morte. Compreendes o que digo? Seria demasiado estarrecedor para teus ouvidos?

Tais palavras ressoaram pela cabeça de Caudilho. Abate! Sabe agora o que significa. Mas a alegria de adquirir novo vocabulário não dura, pois logo percebe o perigo eminente que o rodeia e a todos seus companheiros de curral. Caudilho não entendera o que o nobre cavalo inglês quis dizer com "fim". Para ele, nenhum fim seria decente ou benéfico de qualquer forma. Se as coisas são criadas para acabarem, então, questionava-se, por que eram criadas, em primeiro lugar? Questionamentos assim perturbavam seu sono. Nada mais foi o mesmo para Caudilho após o místico encontro com o nobre cavalo inglês Allan Poe, o corredor.

IV

A marcha aparenta ser inacabável. Filas e filas com um mesmo rumo. Guiando-os, vemos Dom Quixote, audaz, feliz e sentindo-se realizado ao levar, finalmente, todos para o gran finale, a conclusão geral da matéria, a transição do físico ao metafísico. Para Quixote, o fim era, além do término de uma jornada, o começo de uma nova caminhada. O grande fim de uma vida demasiada pacífica e abençoada, afinal, durante toda sua vida, sempre dispôs de um teto sobre sua cabeça, ração em seu coxo e fêmeas para acasalar. Fora uma vida de gado. Aliás, uma boa vida.

Enquanto todos marchavam, Caudilho observava-os ao fundo, solitário. Não conseguira convencer ninguém sobre o abate; terminou ali, sozinho e, talvez, delirante com suas ideias. O bovino, demasiado fraternal, sofria por não poder salvar seus companheiros do fim. A caminhada, para ele, parecia como a marcha sobre Roma dos blackshirt de Mussolini. Aquilo foi aterrorizante ao seu olhar covarde.

Caudilho, inconsolado, decide, de forma abrupta, fugir dali. Não queria ele ver ou presenciar o desfecho que seguiria-se. Desfecho esse que era, aos seus olhos, demasiado cruel.

À chegada dos vaqueiros, o gado pôs-se a marchar em ordem ao abatedouro. Inebriados com o som quase lírico do berrante, marcharam sem perceberem que estavam em direção à morte. A morte, transfigurada em um sofisticado abatedouro com lâminas por todos os lados, provocava calafrios no nobre cavalo inglês Allan Poe, que observava do seu estábulo os pobres e inocentes bovinos, que um a um seriam fatiados pelas lâminas cortantes como espadas de um samurai, que os cortariam feito pedaços de presunto. O abatedouro também os esmagaria, amassando sua carne e toda sua matéria, comprimindo-os a um corpo deformado, como se fossem massas de modelar nas mãos de uma criança inquieta. Acabariam com suas massas pressionadas dentro de caminhões frigoríficos os levando para diferentes pontos de venda no Brasil e no mundo, como Friboi e JBS.

Caudilho questionou-se se suas ações valeram a pena, no final de tudo. Perguntava a si mesmo se seu esforço o trouxe alegria. "Afinal... aonde irei? Teria acabado melhor se estivesse aceitado meu destino...?"

Caudilho morrera sozinho. Mas não literalmente. Morreu sozinho de alma, por ter abandonado seus companheiros. Não interessava mais que eles foram responsáveis por não dar-lhe ouvidos, e sim que o boi do sul rejeitou seu fim, acabando sozinho. Os outros foram; ele não. Caudilho morrera por dentro.