Com asas

Vou falar sobre uma lagarta, uma pobre lagarta que enxergava o mundo preto e branco, sua vida era uma perfeita rotina.

Todos os dias acordava no mesmo horário, às seis em ponto levantava-se com o toque do despertador; tomava banho, preparava o café e um lanche de folhas secas. Tomava seu café sozinha enquanto olhava o mundo de sua janelinha, a mesma paisagem preto e branco.

Saía para o trabalho às sete e meia, arrastando-se pela grama, folhas e espinhos que encontrava no caminho, às vezes ela sangrava.

Sentava-se à mesa e durante todo dia se ocupava com os afazeres, ela não ousava sonhar.

Tinha pra si apenas pequenas metas e alguns prazerezinhos durante os finais de semana e férias.

Almoçava pontualmente às doze horas e às cinco da tarde ia embora pelo mesmo caminho, ela enxergava só o que estava bem à frente, pois estava perto do chão, jantava seu ensopado de folhas em frente à TV e às dez da noite ia pra cama.

Um dia, enquanto rastejava-se para o trabalho, aproximou-se dela uma borboleta:

– Ei amiga, por quê rasteja-se, não sabes que podes voar?

– Não posso amigo, voar são só para lagartas que como você transformaram-se em borboletas, não são todas as lagartas que podem ser borboletas, algumas como eu, são apenas lagartas e nada mais.

– Ora, e quem disse?

– Meus pais foram lagartas, eles me disseram, meus amigos riam de mim quando eu dizia que seria borboleta: “Olhe pra você, pequena lagarta!”. E com licença que eu preciso trabalhar, jamais me atraso! – E assim partiu.

No dia seguinte novamente a mesma borboleta de asas lindas, em tons amarelo e laranja – mas pra ela preto e branco – a aguardava.

– Minha pequena amiga, mentiram pra você, todas as lagartas nasceram pra ser borboletas, e eu sei como você pode voar.

– Ora, não insista, por favor!

Mas a bela borboleta era incansável ela amava aquela lagarta... E por amá-la, queria que voasse!

A pequena lagarta começou a ver graça na companhia que a borboleta lhe fazia, sua rotina aos poucos foi se tornando mais agradável, ela passou a cantar durante seu banho matinal, e não preparava apenas um sanduíche de folhas secas, mas dois. Um para borboleta, que comia enquanto a acompanhava. E ao olhar pela sua janelinha de súbito notou alguns tons de verde no meio da paisagem preta e branca.

Ela adorava ouvir as histórias que a borboleta contava sobre os voos que havia feito e sobre os lugares que conheceu e sobre as lagartas e borboletas que haviam cruzado seu caminho. Falavam sobre livros e histórias cotidianas, gargalhavam! Ela nem se machucou mais durante o caminho.

E um dia, durante o trabalho ela não estava perdida em seus afazeres, ela ousou sonhar, sonhava que voava igual seu amigo, a borboleta, e se pegou sorrindo com os olhos marejados. E então ela decidiu, e com um pouco de medo revelou para borboleta:

– Eu quero voar!

Os corações dos dois cantaram de alegria, se abraçaram e ele falou:

– Voar não é fácil, você passará uns dias em um casulo para que seu corpo crie asas, mas tem um segredo; você precisa libertar-se de todo o peso que carrega. Primeiro é necessário que mude na alma para que então a transformação em seu corpo aconteça e você possa desenvolver asas. É necessário que o peso que carregou por toda a vida venha à tona para que possa arrancá-lo e fique leve para voar, mas terá que fazer isso sozinha. E não se preocupe, estarei aqui todo o tempo do lado de fora e faremos o seu primeiro voo juntos. Vamos colher as mais belas folhas para o seu casulo!

E assim se fez, a borboleta do lado de fora esperou por dias e noites. Ouviu de dentro do casulo, risos, choros e gritos de dor, sentiu vontade de tirá-la dali e abraçá-la, mas sabia que não era permitido, apenas esperou pacientemente que a transformação acontecesse e que sua amiga criasse asas.

Em uma manhã de sol ela estava pronta para o seu primeiro voo, as asas que até então estavas úmidas por todas as lágrimas, secaram. Saiu um pouco desajeitada e com medo, mas foi recebida com entusiasmo pela borboleta. E voaram alto, dançaram sobre o ar, rodopiaram e pela primeira vez o mundo ganhou cores e percebeu como era linda com asas azuis e lilás e enxergou os tons em laranja de seu amigo. E enfim pôde enxergar a beleza, a grandeza e a magnitude do mundo, pois era visto de cima!

E aterrissaram, mas assim que isso aconteceu, levou um golpe! Seu amigo borboleta, aquele que ela aprendeu a amar, lhe deu a mais triste das notícias:

– Agora que voas amiga borboleta, partirei, pois minha missão é transformar lagartas em borboletas.

– Deus, não! Pensei que ficaria comigo. Por favor, não se vá!

– Agora já voas e conhece a beleza do mundo, não precisas mais que eu fique, tem tantas lagartas por ai que precisam aprender voar.

O coração agora da bela borboleta encheu-se de raiva e ciúmes, e uma revolta abateu-se sobre ela ao avistar a borboleta laranja partindo.

Então percebeu que não poderia voar, voltou a ser pesada demais, e agora, mais ainda, pois pior pensar ter nascido apenas para ser lagarta, é ter asas e não poder usa-las por carregar mágoas demais no coração.

E voltou rastejando para casa, o mundo agora era de um cinza quase preto, e voltou para velha rotina, e no caminho para o trabalho sangrava e se machucava mais, já que agora tinha asas e um corpo pesado que deixava mais perto do chão, desejou ser lagarta para ser salva novamente, mas sabia que retroceder era impossível.

Numa tarde, quando voltava do trabalho avistou ao longe seu amigo borboleta em frente a um casulo aguardando ansiosamente pela saída de uma recém-borboleta, ela parou e observou aquilo que um dia vivera.

Viu o momento exato em que borboleta desajeitada abandonou o casulo e o voo ostentador com seu amigo, aquele que outrora fora tão seu!

Se emocionou profundamente, e se envergonhou ao compreender uma verdade:

A de que borboletas e lagartas tinham um período pra dividir experiências entre si e que era inevitável que partissem, e carregá-las depois disso era pesado demais. A única coisa leve que poderia carregar era o aprendizado que cada uma deixara, e então compreendeu que, para voar teria que desapegar não só de quem lhe fez mal, mas de quem havia feito muito bem, esses eram os mais difíceis de deixar. E foi o aprendizado de cada um que a transformara e isso só foi obtido através das relações que teve...

E que algumas borboletas são fantásticas demais, por mostrar algo tão simples, mas que o peso não a deixava enxergar: o de que todas as lagartas podem voar!

E então ela perdoou, perdoou seu amigo que lhe ensinou a maior de todas as lições e se perdoou por pensar que o amor é posse, e ficou leve como uma pluma.

E voou por dias, voou alto, e nunca mais rastejou, pois havia entendido pra que nascerá: para voar!

E desse dia em diante sua vida ganhou um colorido que jamais imaginara!

Cecília Micheleto
Enviado por Cecília Micheleto em 23/10/2019
Reeditado em 09/09/2020
Código do texto: T6777260
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.