Crônicas do Reino do Preste João - Capítulo I
Havia um homem na província de Zayn cujo nome era Capadócio. Ele era conhecido como íntegro, reto e temente a Deus. Tinha filhos e filhas, aos quais casou todos, além de ovelhas, camelos, jumentas, servos, um boi e um burro. Tinha também o dom de entender os animais, mas em sonhos o Eterno já o advertira diversas vezes que não deveria contar isso a ninguém, ou seria castigado com a perda da própria vida.
Certa noite, sentado próximo aos animais com seus servos, ouviu o boi e o burro conversarem. O primeiro se queixava que seu companheiro desfrutava de tranquilidade, limpeza e alimentação farta, enquanto ele próprio tinha que trabalhar pesado o dia todo, tendo que acordar bem cedo todos os dias para fender a terra até o pôr do sol. Ele era forçado a fazer mais do que podia e a suportar todos os tipos de maus-tratos. Depois disso, os homens o levavam de volta com os lados rasgados, o pescoço esfolado, as pernas doendo e as pálpebras molhadas de lágrimas, tendo que dormir em cima de esterco, sujeira e fedor sujo, enquanto o burro em um lugar varrido e limpo. O burro precisava trabalhar raramente, em geral quando seu mestre tinha algum negócio na cidade, e voltava logo.
– Você tudo suporta, ó filho da obediência, calado e passivo como um cordeiro que vai mudo ao matadouro, porque assim o deseja. – Repreendeu o burro. –Quando eles vierem te tirar do teu descanso e tentarem te colocar o jugo, deite-se no chão e não levante nem que eles te chicoteiem. Se te trouxerem comida, recuse-se a provar ainda que seja o pasto mais saboroso. Assim, considerando que você está doente, te deixarão descansar o dia inteiro, ou dois, ou três.
Quando o boi ouviu essas palavras, saltou de alegria e contentamento, concordando que o burro era um bom amigo. No dia seguinte, o criado tentou toma-lo para começar os trabalhos, mas ele recusou levantar-se. O servo golpeou-o com o chicote de couro até desesperar-se, mas o animal não moveu um músculo. Tentar alimentá-lo também não o tirou de sua inércia. O criado até ensaiou uma oração:
– Ó criatura de Deus, pelo sangue precioso de Cristo, manifestado no fim dos tempos em nosso favor, que purifica nossas almas e nos ressuscitará dentre os mortos, eu te conjuro, levanta!
Mas nem a oração deu jeito. Então ele foi até seu patrão e relatou o ocorrido. Uma vez que este ouviu a conversa entre o boi e o burro, sentenciou:
– Pegue aquele burro patife, ponha a canga em seu pescoço e obrigue-o a fazer o trabalho do boi.
O servo obedeceu, e o burro foi obrigado a cumprir as obrigações de seu companheiro o dia todo. No fim dos trabalhos, suas costelas doíam, seu pescoço queimava e ele mal conseguia arrastar as patas no chão para se mover. Quanto ao boi, ele havia passado o dia inteiro descansando. O patrão ficou por perto para ouvir o que eles conversariam quando o burro foi levado de volta à manjedoura. Ele lamentava sua loucura em dar conselhos, e perguntou ao boi o que pretendia fazer no dia seguinte.
– Ora, o que mais? Seguirei tua orientação e me fingirei de doente de novo. Posso ficar mais um dia sem comer.
– Não seja burro! Se você não se levantar amanhã, eles vão te entregar ao açougueiro, eu os ouvi dizer. – O burro mentiu. – Siga meu conselho agora, volte a trabalhar novamente amanhã, antes que te aconteça uma tragédia.
Então o boi levantou-se, aproximou-se do companheiro e abaixou sua cabeça em sinal de reverência, agradecendo-lhe os bons conselhos. A seguir devorou todo o alimento deixado para si. Na manhã seguinte, o comerciante seguiu o servo até a manjedoura, e sua esposa o seguiu também. Ao vê-los, imediatamente o boi levantou e começou a pular, brincando como um bezerrinho. O mercador gargalhou, e continuou rindo até cair de costas.
– Por que você ri tanto? – Perguntou sua mulher.
– É um segredo que não posso te contar, pois isso custaria minha vida. – Ele tentou imprimir um tom sério em sua voz, mas ainda estava achando graça da situação. Como era de se imaginar, a mulher não aceitou a explicação, e começou a insistir que ele contasse o que aconteceu. Ela insinuou abandoná-lo se ele não contasse. Ela até sentou e chorou. A mulher o importunou o dia todo, até que ele ficou exausto e completamente perturbado. Finalmente, disse:
– Toda a humanidade é como a relva, e toda a sua glória, como a flor da relva; como a relva murcha e cai a sua flor, assim nós morremos. Farei tua vontade. Convoque teu pai, tua mãe, nossos parentes e vizinhos. Hoje à noite revelarei o meu segredo.
Assim ela fez, reunindo toda a família e o povo de sua vizinhança.
– Eu mandei chamá-los porque tenho guardado um segredo que, se for revelado, pode me custar a vida. Assim, diante de todos, eu conjuro minha mulher, filha de Pasan, irmão de meu pai, a mãe de meus filhos, a que pare com sua malícia e obstinação pecaminosa e deixe de me importunar com esse assunto.
A mulher ficou surpresa. Ela esperava que seu marido contasse seu segredo e morresse. O feitiço se virou contra o feiticeiro, os convidados começaram a arrazoar com ela para que parasse com sua maldade. Capadócio deixou a mesa do banquete e saiu para o galinheiro, para meditar. Se a intervenção de todos não resolvesse, estava disposto a contar seu segredo e morrer, pois isso lhe parecia melhor do que viver sem sua amada esposa.
[CONTINUA]