Amor despido

Certa vez, em tempos remotos, floresceu entre um cavalo, um belo e indomado garanhão, e um unicórnio fêmea, um amor intenso, mas platônico. Os dois eram de espécies diferentes, e jamais seria tolerada tamanha afronta aos costumes e às tradições da sociedade equina, que era, naquele tempo, bastante intolerante e dogmática. Além disso, a unicórnio sentia uma necessidade no matrimônio, pois achava que a não legitimação do seu amor perante a sociedade seria como uma suspeição de sua veracidade.

O cavalo, desvairado de amor, tomou então aquela que só não era a pior das escolhas por ser a única. Sim, a única, pois quando o amor nasce em um coração determinado como o que esse cavalo possuía, ele não deixa escolha a não ser concretizar os desejos mais íntimos e excêntricos que permeia em sua mente.

A decisão do cavalo foi fazer sua amada se deitar com outro. Demorou um pouco para que esse seu desejo, mais que estranho, se concretizasse. Porém, ao contrário do que se possa imaginar, não exigiu muito esforço por parte do cavalo, bastou que ele, através de um pretexto, afastasse-se das redondezas por um período de tempo que nós humanos costumamos chamar de bimestre.

Nos primeiros dias a unicórnio lhe era fiel até em pensamentos. Mas diante de tantas cortesias de seus vários pretendentes da mesma espécie, da solidão em que se encontrava e, principalmente, do desejo da carne que lhe instigava e não se cansava de travar batalhas estridentes contra o seu amor e fidelidade, acabou cedendo. Após galanteios e alguns mimos do unicórnio mais desejado e celebre das redondezas, ela então entregou-se e entrou de vez no fogo da lascívia que há tempos lhe chamuscava o colo. Foi uma noite longa e ela regozijou-se de cada momento. Entretanto, na manhã seguinte, olhou serenamente àquele com quem tivera a mais voluptuosa experiência carnal de sua vida e disse, resoluta:

— Adeus.

— Mas... — objetava o unicórnio quando foi interrompido.

— Não me entenda mal, esta noite foi magnífica ao meu corpo, mas à mente, digo, ao coração, ela nada significou.

Se despediu mais uma vez e saiu caminhando, na esperança que o amor lhe servisse de bússola e guiasse seu corpo na direção de seu amado.

Sim, o amor pelo cavalo ainda dominava o seu coração.

É digno de uma análise bem aprofundada o fato de que, no dia que se seguiu àquela noite, o seu amor pelo cavalo não só permanecera firme, na verdade, duplicara. Das várias conclusões que podemos extrair dessa situação, a mais verossímil é que, como ela tivera a noite mais prazerosa da sua vida com um outro e, mesmo assim, seu amor pelo cavalo não se abalou nem um pouco, ela inconscientemente chegou à conclusão irredutível de que era ele o escolhido de seu coração, e que, não importava o que viesse a acontecer, continuaria a sê-lo. E isso, certamente, só deixou o cavalo ainda mais simpático e irresistivelmente atraente ao seu coração jovem e sedento de amor.

Nessa mesma manhã, o cavalo que estava longe da sua amada já há dois meses, acordou e foi a um lago próximo de onde dormia a fim de matar sua sede fisiológica, já que não podia ainda matar a psicológica que era estar ao lado de sua amada. Porém, ao baixar a cabeça para dar goles na água límpida do lago, viu algo que esperava ansiosamente e ainda assim demorou a acreditar; pois, eis que um corno enorme lhe brotou no centro da testa. Ele era agora um legítimo unicórnio, portanto, apto a voltar para sua amada e casar-se com ela.

Ébrio de felicidade, dirigiu-se então o mais rápido que pôde à vila onde ela se encontrava. Chegando lá, e encontrado ela logo na entrada da vila, disse-lhe:

— Estou de volta. Olhe bem para mim!

Ela estava estupefata e cheia de felicidade. Mas quando viu o seu chifre, temeu que estivesse tudo acabado e tentou se explicar.

— Ó! Querido, não sei como isso foi acontecer. É que...

— Responda-me — interrompeu o cavalo — Tu me amas?

— Sim! Juro pelo que de mais importante tenho, que é próprio amor em questão.

— Vistes já algum ser vivo perfeito?

— Não, que a inexistência meus olhos não podem ver.

— Então tenha em mente o seguinte. No ciúme há mais amor próprio que amor ao próximo; nem no amor sincero é sensato exigir perfeição; e que para termos a felicidade em conjunto, de um pouco da individual é preciso ceder.

Depois desses acontecimentos os dois puderam se casar. Organizaram uma grande festa, convidaram conhecidos e desconhecidos e obtiveram a aprovação e os aplausos de todos. Realizaram, desse modo, o que a própria unicórnio admitiu depois ser um capricho; uma necessidade não sua, mas dos outros, aliás, uma desnecessidade.

E, desde que se uniram, até o fim de suas vidas, viveram, como os dois já sabiam que seria, independente do que pensassem os demais, mais alegrias que tristezas.

David Ariru
Enviado por David Ariru em 25/09/2019
Reeditado em 31/10/2019
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