Karmas S/A(Concurso filosófico de contos 2018 -)

Desculpem a urgência dessas palavras, mas é que a minha amnésia terrena pode voltar a qualquer momento e então será tarde de mais.

Nessa vida eu me chamo Jordão, mas não sou o Jordão. Tenho 38 anos, mas essa não é a minha verdadeira idade.

Jordão é o nome que me deram logo que eu nasci dentro desse magnífico recipiente. E 38 anos é somente o tempo em que eu resido neste corpo, nesta “persona”.

Como eu despertei desta amnesia e descobri que não sou esse nome, este corpo e essa persona?!Bem. Essa história é tão intrigante quanto a história de como eu vim parar dentro desses poderosos veículos.

Tudo começou antes daqui, quando intuitivamente começava a procurar um corpo material para morar. Sim. Parece que há, de certa forma, dentro de cada alma, um impulso para se expressar e comigo não foi diferente. Então, deixei o seguinte aviso em uma famosa imobiliária: procura-se uma casa(corpo) para me expressar!!!

Passado algum tempo a imobiliária desse corpo, dessa máscara, entrou em contato e avisou-me que eles estavam oferecendo uma casa que parecia se encaixar perfeitamente com o meu perfil e, além disso, tinha a vantagem de ser semi mobiliada. Na hora isso me pareceu conveniente, pois eu não tinha nenhuma mobília, a não ser certas reminiscências que pareciam orbitar meu Ser.

Chegando la, fui ficando logo satisfeito. A casa já vinha com um computador de última geração da tradicional marca “Kama Manas”, além de uma ótima TV SMART da marca “Astral Emotion”. A instalação elétrica também era de boa qualidade e incluía o seguro-garantia da respeitável empresa “Prânica Ltda”. O telhado, assim como as paredes, eram de qualidade notória e exibiam excelente textura, próprias das reconhecidas tintas coral “Etero-físico”. Assim, vi logo que era uma casa de bom gosto, decorada por gente que sabe o que faz. Tudo muito bonito, ordenado, mas...“estranho!” Percebi também que havia algumas coisas, vamos dizer, “exóticas”. O cômodo do banheiro, por exemplo, tinha o nome “instinto” esculpido na porta. A cozinha, por sua vez, chamava-se “temperamento”. Achei tudo muito inusitado, mas não vi problema de imediato, não fosse a próxima descoberta.

Quando eu abri o dito banheiro, deparei-me com um grupo de homens guerreiros, todos amontoados ali, que mais tarde vim a saber tratar-se da tribo “Kuravas”. Bastou eu abrir a porta e foi um alvoroço só. Gente saindo pelo ladrão e se instalando por toda a casa. Na hora, achei um absurdo e fui reclamar na imobiliária. (Caso eu não tenha falado ainda, que fique registrado tratar-se da temerosa “Imobiliária Karmas S/A.”).

Fui até a imobiliária pra reclamar dos “kuravas” e acabei me empolgando e informei também que não gostei da ideia de um banheiro chamado “instinto” e do temperamento(que era a cozinha).Pensam que eles se compadeceram?! Que nada. Eles disseram que os “kuravas” eram um povo antigo que habitava todas as casas daquela região há muito tempo e que já tinham direito adquirido de morar ali por “usucapião”. A imobiliária até salientou que provavelmente eu me daria muito bem com esse povo, pois, no histórico da maioria dos inquilinos, os kuravas se tornavam bons comparsas. Já em relação aos cômodos – instinto e temperamento –, eles disseram-me que tais características faziam parte do pacote e não poderiam ser modificados. O resto da casa, segundo o Sr. Karma, eu poderia mobiliar como quisesse.

Eu até tentei argumentar. Mas vocês já tentaram argumentar com o Karma?! O cara é ruim de jogo. Por fim, resignado, acabei aceitando.

Pra encurtar a história, seguindo o conselho do Sr. Karma, decidi mobiliar os outros cômodos a meu gosto, dando uma nova roupagem. A casa já tinha seu jeitão próprio, é verdade, mas eu, enquanto alma, tinha uma necessidade natural de impelir uma transformação própria em minhas moradas. Tinha assim, uma convicção de que, com a mobília certa, eu seria capaz de formar o “caráter” dessa casa para que melhor me expressasse.

O plano parecia bom, não fosse a mais nova surpresa: a bem dita amnésia terrena.

Mal eu me instalei na casa, apoderou-se de mim uma espécie de amnésia, fazendo-me esquecer de quem eu realmente era. Agora, junto com todos os infortúnios que uma amnésia pode causar, eu tinha que lidar com a mais premente de todas: - mobiliar a casa que iria me expressar nesse novo mundo, desprovido, contudo, do senso estético de alma devido a amnesia terrena.

Nesse sentido, como as minhas ideias de alma estavam esquecidas e eu ainda não tinha uma personalidade formada, acabei aceitando a opinião de todo mundo na decoração dessa nova casa. Engraçado como não faltava gente disposta a me educar sobre o que eu deveria colocar na minha casa. Os meus pais, a escola a televisão, a sociedade, a religião, o governo, todos tinham opiniões a me oferecer como educação.

Claro que eu não aceitava tudo sem refletir. Embora eu estivesse com amnesia sobre a minha verdadeira essência, eu ainda tinha algumas ferramentas para me ajudar. Então eu utilizava meu “kama manas”, meu “astral emotion” aliado ao meu temperamento para tomar as decisões. Mas se ainda sim eu tivesse duvida, eu perguntava aos meus novos amigos kuravas, que, na época, pareciam-me muito sábios e me ajudavam bastante.

Nesse momento, já dá pra vocês imaginarem a confusão não é!? Deixa eu descrever as coisas que entraram na decoração da minha morada.

Entrou o sofá dos hábitos ruins. A cama do automatismo, os quadros da fantasia, as roupas da ignorância.Todas essas coisas começaram a gerar mofo de todos os tipo. O mofo do apego, do egoísmo, da ganância, da inveja, da separatividade.

Diante de tamanha confusão, somada a amnésia, só quem parecia não se importar eram os “Kuravas”.

Possivelmente, tudo estaria perdido e eu não estaria contando esta história para vocês não fosse aquela certa reminiscência de alma que me orbitava no início de tudo e que de certa forma foi regada pela espiritualidade dos meus pais.

Tal reminiscência era como uma pequena chama de consciência no cantinho da casa. Uma chama que me dizia que tinha alguma coisa errada. Uma chama que me levou a seguinte pergunta: quem sou eu, nisso tudo?! Quem sou eu, afinal?!

Posso dizer que foi esse vislumbre de lucidez que iniciou a grande mudança em minha vida, pois só então tomei coragem de conhecer uma escola de filosofia que a tempo me intrigava.

Com pouco tempo nessa escola, embora ainda esquecido da minha origem, eu já me sentia motivado a fazer uma limpeza na casa. Percebi que eu já não me identificava totalmente com aquela persona. Que ela não me representava. Então, disse a mim mesmo: chega de ideias superficiais. Chega dessa mobília vazia. Agora vamos fazer uma decoração que eu aprendi la na escola do tipo “estoica”, só deixando as coisas que realmente tem valor.

Assim, entrei em casa decidido e de cabeça erguida, mas só até dar de cara com os kuravas. Oh povo astuto!! Depois de tanto tempo, eu sentia como se eles fossem praticamente meus parentes. Bastou eu conversar um pouco com eles que, utilizando-se de bons argumentos, conseguiram me dissuadir das mudanças rapidamente.

Quando retornei à escola, cabisbaixo, eu achei que os professores iam me criticar por eu não ter posto a limpeza em prática, mas não foi assim. De alguma maneira a critica parecia ter sido extirpada dessa escola, o que pra mim foi ótimo, pois eu não sabia lidar muito bem com elas. Então os professores apenas me aconselharam a parar de colocar mais móveis em casa e, na medida do possível, plantar algumas sementes no jardim.

Plantar sementes no jardim!? Pensei. Pra que?!

Não entendi na hora, mas pela aparente facilidade do serviço, achei ótimo e consultei meus “kuravas” que se demonstraram indiferentes desta vez.

Assim, demos prosseguimento e os professores me indicaram uma terra muito especial fornecida pela empresa “Triade Sociedades Anônimas”. As sementes, disseram os professores, seriam fornecidas pela própria escola, pois detinham a expertise no manuseio desse elemento.

Então eu plantei em meu jardim as sementes fornecida por esses devotados professores. Passado algum tempo, para a minha surpresa, as flores começaram a nascer.

A primeira foi a camélia da atenção voluntária. Depois veio o crisântemo da memória ativa. Logo mais, praticamente juntos nasceram o girassol da imaginação e a orquídea da inteligência. Essas flores, por algum motivo trouxeram uma sensação de unidade dentro da casa.

Na sequência, nasceram também a rosa da fraternidade, a gérbera da justiça e a tulipa da vontade. Assim, várias flores começaram a nascer, como se uma puxasse a outra. Diante de tanta beleza eu sentia que algo dentro da casa se harmonizava e começava a clamar por um propósito. Os professores me disseram que esse era o jardim da minha consciência que começava a florescer.

E a novidades não paravam de aparecer. Conforme as flores iam crescendo, o mofo da minha casa também começou a desaparecer. Intrigado, levei a questão para a aula e a professora me explicou que o mofo sumia porque a escuridão não podia conviver com a luz.

Assim, eu também já não sentia mais desejos de colocar ideias confusas para dentro da minha casa. Uma sensação de ordem me invadia e eu finalmente tive força para fazer aquela limpeza que eu tanto adiava.

Os “kuravas”, que antes andavam pela casa como donos, voltaram todos para banheiro de onde saíram e já não davam tantas opiniões.

Em compensação, conforme o jardim da consciência ia florescendo, uma nova tribo chamada Pandavas vieram me visitar e foram ficando, dando nova cara para minha morada. Juntos, eles também me ajudaram a entender que o propósito de toda casa é promover o ideal de justiça, de verdade, de bem e de belo.

Não bastasse tanto aprendizado, minha memória também começou a retornar.

Hoje estou aqui perante vocês e minha amnesia se foi, pelo menos em parte. É por isso que eu posso dizer que me chamo Jordão, mas eu não sou o Jordão. Que moro nessa casa há 38 anos, mas eu não sou essa casa. Também posso dizer que essa casa, depois do jardim da consciência, deixou de ser casa e virou templo.

É certo que um dia a imobiliária Karmas S/A vai bater na casa de cada um de nós, sem avisar, exigindo a devolução de nossos imóveis. Disso todos temos certeza.

Mas minha verdadeira conquista está em saber que ao devolver este templo, o jardim da consciência construído aos cuidados desta escola será minha verdadeira vestimenta, e o meu aprendizado aqui, o meu único tesouro.