O coelho predador
Um coelho de óculos, postado bem no meio de uma pequena clareira na floresta, digitava ininterruptamente seu laptop, completamente absorto em sua tarefa, totalmente desatento aos perigos ao seu redor.
Eis que se aproxima sorrateiramente, oculto pelas folhagens dos arbustos, uma astuciosa raposa. Ao ver o coelho desatento logo pensou que ali estava seu jantar, era só aproximar-se sem despertar-lhe a atenção. Mas tal era a aplicação naquele louco digitar que a raposa resolveu observar sua presa por uns instantes, antes de devorá-la. Surpreendeu-a a devoção com que o coelho digitava.
Saltou sobre ele imobilizando-o mas antes de cravar-lhe as presas no pescoço perguntou:
- Antes de saciar meu apetite, diga-me uma coisa: o que anda a digitar com tanto afinco que até se esquece de que pode virar janta das feras da floresta?
- Minha tese...
- Tese? Que tese? O quê você anda escrevendo?
- Minha tese! Diz que os coelhos são predadores das raposas.
- Rarrarrá... que piada. De onde você, que está com sua garganta aqui entre minhas presas, tirou tal disparate? Sempre fomos nós, raposas, que predamos os coelhos.
- Bem, se você não acredita em minha tese, entre aqui comigo em minha toca que lhe mostro os argumentos que a comprovam.
O coelho mostrou ao lado a entrada da sua toca, a raposa com um ar de pilhéria entrou primeiro, seguida pelo coelho. Ouviu-se então um som de luta dentro da toca, logo silenciado. O coelho saiu esfregando as patas, e voltou ao seu trabalho de digitação.
Então foi um lobo que se aproximou da clareira, e vendo o coelho distraído pensou e agiu da mesma forma que a raposa. Sua fome era grande, mas a curiosidade de saber o que tanto entretinha o incauto coelho era ainda maior. Subjugou-o com mais facilidade ainda, e antes de trucidá-lo fez a mesma pergunta:
- O que está a digitar com tanto fervor?
- Minha tese, a de que os coelhos são predadores dos lobos!
- Que absurdo! Vocês têm sido nossa principal alimentação. Desde sempre!
- Ora, venha comigo à minha toca que lhe mostro as provas do contrário.
O lobo, sem nada suspeitar, entrou na toca, seguido pelo coelho. De novo ouviu-se o som de luta, logo silenciado. E de novo o coelho saiu esfregando as patas, e continuou sua obstinada digitação.
Para encurtar, ainda foram vítimas da imprudente curiosidade uma hiena, um leopardo e uma pantera. Ao final, restava dentro da toca do coelho uma pilha de ossos descarnados e um leão de barriga cheia. O leão era o orientador da tese do coelho.
Moral da história: não importa quão absurda seja a tese, o que importa é a força do orientador.
Fábula-piada ouvida no âmbito da USP em 2003.