O lobo e o cordeiro na nova tropicália

Semelhante àquela antiga fábula de La Fontaine, mas agora já em nossos dias, chegavam, distanciados de uns poucos metros, um lobo e um cordeiro à beira de um regato de águas límpidas, daquelas que se pode beber. Os dois eram candidatos à iminente eleição para a direção do rebanho de ovelhas. Vinham de longas caminhadas e comícios, ambos estavam cansados e sedentos. O lobo vestia um colete militar camuflado cheio de bolsos que pareciam trazer muitos volumes. O cordeiro portava um lenço vermelho de algodão enrolado em torno do pescoço de ondulada lã branca.

Do outro lado do regato, um bando de ovelhas que estava a pastar viu a aproximação dos dois e pôs-se a observá-los. Era um grupo de potenciais eleitores, que logo chamou a atenção do lobo e do cordeiro.

Sequioso que estava, antes de qualquer debate o cordeiro resolveu primeiro saciar a sede. Ao abaixar-se sobre a água límpida ávido por um gole, ouve do lobo situado alguns metros a montante, do mesmo lado do regato:

- Heeeeiiiii, pode parar! Não está vendo que vou beber dessa água e que se você o fizer antes de mim vai turvá-la e não poderei mais bebê-la? Isso lá são modos de um candidato como você que diz que tem como princípio básico o respeito ao próximo?

Ele falava alto, de soslaio espiava a reação do bando de ovelhas do outro lado do regato. Ficava evidente que queria impressioná-las para ganhar-lhes os votos.

- Ora, não posso estar turvando a água que vai beber -; respondeu o cordeiro. -; Estou à jusante, você é que poderá turvar a água que eu vou beber. Por isso apressei-me para beber antes que isso acontecesse.

- Ah, logo vi. Seu discurso fala em justiça, em igualdade, mas na hora de beber bem que se apressa para ser o primeiro, sem se importar com a água turva que vai provocar. É bem o que esperar de um comunista...

- Não turvei a água. Ainda nem consegui beber. E já disse, estou abaixo, eu é que corria o risco de ter a água turvada. E comunista? Quem disse que sou comunista?

- Ora se esse seu discurso em favor de baderneiros que fazem greves, invadem fazendas, fazem quebra-quebras em arruaças pelas cidades não é discurso de um comunista! E esse seu lenço vermelho, meu caro! Vermelho é a cor dos comunistas, vá agora negar isso. Você já não engana ninguém.

- Você está enganado! Quem faz greve não é baderneiro, mas é o trabalhador que ganha a vida com o trabalho, e que procura defender seus direitos frente a patrões que parece que lamentam o fim da escravidão e nunca têm sua ambição saciada. Querem cada vez mais explorar seus empregados. Enlouquecem para ganhar tanto dinheiro que nem sabem o que fazer com ele. E as fazendas invadidas são aquelas cujos donos foram condenados por lei. São grandes proprietários rurais condenados por trabalho escravo, trabalho infantil, terras devolutas, sonegação de impostos, fraudes e outros crimes. As manifestações nas cidades são pacíficas, são multidões de ovelhas que querem chamar a atenção para injustiças, para explorações, para desmandos de governantes que se esqueceram do rebanho e passaram a agir em causa própria. Quem faz os quebra-quebras são lobos em pele de ovelhas que se infiltram para desmoralizar as manifestações...

A fala do cordeiro tinha firmeza e razões, e já ia longe demais. O lobo interrompeu-o bruscamente.

- Isso é conversa de comunistas que sempre enganaram o povo. A História está cheia de exemplos de que o comunismo leva à bancarrota das nações. Veja o caso da França, Rússia, Camboja, Cuba, Nicarágua, Venezuela... Nunca deram certo. Os comunistas são ditadores tiranos, obrigam a trabalhos forçados, encarceram, fuzilam e decapitam seus opositores, separam famílias, sacrificam crianças, usurpam a propriedade do cidadão honesto para entregá-la a bandidos, perseguem religiosos e condenam quem crê em Deus. O próprio Deus é proscrito nessa hedionda ideologia ateísta. Querem dominar o mundo e disseminam enganosamente sua malfadada e infectante doutrina usando as artes, a literatura, a educação... E o comunismo não passa de uma mentirosa utopia.

O lobo revelava-se um hábil orador. O cordeiro procurava mostrar-se sereno, mas era visível que ia perdendo a paciência. Já estava com as patas dianteiras um pouco dobradas e a cabeça um pouco abaixada, como se estivesse prestes a arremeter contra o lobo, embora nem chifres tivesse. Controlando-se, respondeu:

- Quanta ignorância! Nunca houve verdadeiro comunismo no mundo. Nesses países que você citou aconteceram sim revoluções populares, depois sabotadas por poderes imperialistas estrangeiros ou aparelhadas por homens truculentos e sanguinários que implantaram regimes de terror. Comunismo não é uma utopia inalcançável, é um sonho que a Humanidade vai viver quando conseguirmos ser mais solidários e menos egoístas e selvagens. E nem sou comunista, sou socialista. O lenço vermelho que uso é da cor do sangue derramado pelos patriotas e mártires que tombaram pela justiça e pela liberdade dos oprimidos ao longo da História.

O lobo notou que a fala do cordeiro ia enchendo de brios o rebanho do outro lado do regato. Deixou então de lado a retórica de político e mostrou sua verdadeira natureza. Arreganhou as presas e antes de saltar sobre o cordeiro ainda bradou:

- Mentiras. Vocês cordeiros são mestres na mentira. Além de mentirosos são falsos. Comem muito mais grama que nós, os lobos, que só fazemos ensinar a cultivá-la para vocês. E por isso a grama anda escasseando.

Assim dizendo, pulou sobre o cordeiro que nem conseguiu reagir, fincou as aguçadas presas no pescoço lanoso e branco, tingiu-o de um rubro sanguíneo que acabou por se confundir com o lenço vermelho. De pronto, ferozmente devorava o pobre cordeiro abatido.

As ovelhas do outro lado do regato ficaram estarrecidas. Um terço delas, intimidado, surpreso e indignado, ficou paralisado mas com crescente revolta interna. Seu voto num outro possível candidato cordeiro estaria fortalecido, não fosse o medo. Outro terço contagiou-se com a raiva, admirou-se do poder do lobo, pensou que se votasse nele tornar-se-ia meio lobo, talvez um dia viesse a ser considerado igual aos lobos e aceito entre eles. Outro terço assustou-se, acovardou-se. Achou melhor ocupar-se de outra coisa, que não aquela eleição próxima. Afinal, tinha-se que pensar na grama a pastar, no inverno à frente, na brancura da lã, na tosquia, nos filhotes. E naqueles constantes sumiços de ovelhas, que ninguém sabia explicar.

E o lobo, após saciar a voracidade e o afã, amansou o jeito, voltou-se para as ovelhas que ainda permaneciam do outro lado do regato e deu início a um rosário de promessas para melhorar a vida no rebanho. Mas não tocou no assunto do sumiço de ovelhas. E nem elas ousaram perguntar.

Moral da história: contra o poder da boçalidade não há argumentos.

Publicado no blog http://perrengasprincesinas.blogspot.com/