FÁBULA "DESFABULOSA"

FÁBULA "DESFABULOSA"

No trissecular Agreste nordestino de carências e miséria, de abandono e carestia, de retrocesso e atraso permanentes "seu" Amâncio enterrara o filho amado e, adiante, a esposa deste, lhe sobrando como "herança" um menino esperto e prestativo, netinho que fôra morar com êle e que nessa manhãzinha se preparava para ir à cidade, longe de tudo, léguas de poeira e calor. Saíram no burrico da família, jeguezinho do tamanho do menino, que o puxava pelo arreio, o idoso montado na cavalgadura.

Logo adiante, fincada no areial infértil, a casa da "linguaruda" mais perigosa do lugar, famosa pelo "veneno" dos seus comentários maldosos, metendo-se -- sem ser chamada -- em todos os assuntos. Mal avistou o velho, folgadamente escanchado no muar estropiado, com a cabeça esticada na janelinha de sua cozinha, exclamou:

-- "Mas, que absurdo é esse, "seu" Amâncio... o senhor forte e "sacudido" vai sentado no jegue e esse pobre garoto faminto, só pele e osso, segue andando ?! O senhor não tem coração ? Onde já se viu uma coisa dessas" ?!

Saiu com uma vassoura nas mãos, ameaçando:

-- "Desça já desse cavalo ou leva 1 peia daquelas" !

Amâncio apeou constrangido, era muito cedo para aborrecimentos. Seguiram assim até topar com o casebre tosco do professor "Mundico", muito deteriorado pois o mestre não tinha caída para os serviços manuais de marcenaria que a morada lhe cobrava. Com xícara de café na mão, na outra naco de pão, comentou:

-- "Bons dias, "nhô" Amâncio... porque não vão os 2 no burro" ?!

-- "Oras. "perfessô"... não sei se o bichinho 'guenta" !

-- "Aguenta, sim, compadre, esses asnos são muito resistentes. Já vi desses suportando 4 arrobas de carga e continuava "rindo" !

-- "Pois é, a dona Candinha danou-se a falar, lá atrás" !

-- "Aquela "língua de sogra"... já devia estar no Inferno" !

-- "Estou indo pra cidade... com sua licença, seu "Mundico", é preciso chegar cedo, a fila no Banco é grande" !

E seguiram viagem mas, desgraçadamente, ficara "pro final" a vistosa casa dos inconvenientes Pedreira, pai e filho, "unha e carne", conhecidos por troçar de quase tudo: pessoas, coisas, religião, políticos, o diabo a 4 !

-- "Égua, sô, assim vosmecê mata o burro!, exclamou José Eduardo, o pai, sentado à mirrada sombra de minguado cajueiro, a montar seu cigarro de palha.

-- "É um "burro" em cima do outro"!, completa José Miguel, o filho destemperado.

-- "O jegue 'tá com 1 palmo de língua de fora, seu Amâncio... desse jeito morre pelo caminho"!

-- "É véra... ou compra uma carroça pra distribuir o peso ou o bicho "bate a cassuleta" antes da outra légua" !, acrescenta o desbocado jovem Pedreira, um azougue vivo.

-- "Ora, não me amolem... deviam estar no roçado agora, seus folgados"!

E com verve poética que muitos possuíam por aquelas bandas declinou "quadrinha" que silenciou a dupla:

-- "Zé Duda e Zé Migué, / um de ida, outro de vinda, / entabularam conversa / e essa quase que não finda. / Zé Duda não p(h)ode mais... / Zé Migué não p(h)ode ainda" ! (*1)

Assim que a casa sumiu de vista, vô e neto apearam do burrico esfalfado e continuaram a pé. Mal chegaram às portas da cidade, lá já os esperava o vereador mais trapalhão, mais improdutivo, mais vigarista e mais arrogante que o lugarejo conhecera. Wlad "Josta" Malta, uma "praga" que não se entende como eleitores conscientes possam eleger. "Seu" Amâncio e êle já haviam "se estranhado" outras vezes. O "telégrafo sem fio" das fofocas tinha alertado o edil.

-- "Soube de tudo, velho... maltrato de animais é crime. Eu podia mandar prendê-lo" !

-- "Conheço a tal lei, só por isso você não apanhou ainda. Mande o prefeito calçar a cidade, seu "merda" !

-- "Nossa função só é fazer leis, obras cabem ao alcaide" !

-- "Pra isso precisam ganhar mais do que médico e professor juntos ?! São um "bando de ladrões", patifes" !

-- "Assim vosmecê me ofende. O juiz da Comarca chega por esses dias, vou pedir sua prisão por desacato, vais mofar no xilindró" !

-- "Se fôr prender todos os desonestos da cidade, vão ter que fechar a Câmara... por dentro" !

-- "Olha, não abusa, velho Amâncio, ou vais mesmo "ver o sol nascer quadrado" !

-- "Me deixe ir, "Josta de uma figa", tenho mais o que fazer" !

E correu pro Banco, já bem cheio tão cedo. De posse dos mirrados "caraminguás" da aposentadoria comprou 1 carrocinha -- na qual encilhou o jegue -- e rôta espingarda, quase inútil. Ao chegar perto de casa o aguardava no terreiro dona Candinha, inteirada da compra da arma pelo "ramal das fofocas":

-- 'Soube que o senhor tem 1 "trabuco"... veja lá o que vai fazer. "nhô" Amâncio" !

-- "É pra calar de vez boca de "faladô", vizinha" !

E seguiu em frente, resmungando para o menino ouvir:

-- "Às vezes sinto vontade de encher essa velha de chumbo... ô, língua desgraçada" !

Visto pela ótica infantil lá estava a "jararaca de peruca" jorrando sangue igual barril furado, aos gritos de "velho maldito" !

Entraram na choupana pelas 3 das tarde, cansados demais para qualquer coisa. O idoso lamentou a compra da arma, quando tudo o mais fazia falta na casinhola de taipa.

MORAL dessa estorinha ridícula: em outras Nações só fala da vida alheia quem tem a sua "nos trinques" mas. no Brasil, quanto pior a situação do sujeito mais êle se dedica a reparar na vida dos demais, sem cuidar em nenhum momento da própria. E assim caminha a Humanidade !

"NATO" AZEVEDO (em 4-6/junho 2019)

OBS: (*1) - SEXTILHA "emprestada" da magnífica obra "SERTÃO ALEGRE", do pesquisador Leonardo Mota.