A vida do homem morto

Que possa padecer no inferno, o primeiro verme que se deleitou com a podridão do meu cadáver, afinal vocês não sabem como podem ser lúgubres os dias, aprisionado nessa caixa de madeira soturna, tendo como companhia apenas as próprias criaturas nefastas que se divertem cavando túneis, quilômetros de microvias por entre o universo de carne morta.

Enquanto sirvo de banquete para esses miseráveis seres, sobra muito tempo para refletir. Se tivesse papel e lápis, até me arriscaria a poetizar, não tive tanto tempo para compor versos em vida, agora, ao meu dispor todo tempo do mundo, vejo-me incapaz de registrar minha arte.

Numa oportunidade qualquer, regada à pura nostalgia, não deixei de pensar na família. Coincidência ou não me visitaram no mesmo dia, uma conexão pós-morte, trouxeram flores negras e murchas. Gritei que estava aqui, podia ouvi-los, que sentia saudades, mas acho que o som não emergiu até a superfície, talvez simplesmente não tivessem coragem de escutar. Na mente ideei que pudesse lhes escrever, narrava que as noites costumavam ser frias, capazes de ranger os dentes ou aquilo que sobraram deles. Em contrapartida, os dias eram demasiadamente quentes, fazendo-me sentir saudades das gélidas gavetas do necrotério, como mantinham o frescor da carcaça sem vida.

As noites tempestuosas despontavam como verdadeiros desafios. Cada relampar parecia um anúncio para o fim do mundo, os lampejos eram intensos, capazes de sobrepujar a terra, invadindo as frestas da madeira para irradiar aquela exígua cova. Se os estampidos, provenientes das trovoadas, eram assustadores, as chuvas sempre configuravam a pior parte da desventura.

O volume de água pluvial, gradativamente, infiltrava o cimento gasto, levando poucos minutos para cruzar os sete palmos de terra, e mais rápido transpassava a madeira para inundar todo o caixão. O medo de não conseguir respirar, em meio ao dilúvio, fazia-me sentir vivo, ao menos por meros instantes. Uma parte d’agua entrava pela boca, matando a sede que já não sabia se sentia. Devo admitir: o momento mais divertido era quando o líquido gelado, meio negro por conta da mistura com a terra, escorria pelos orifícios abertos pelos vermes malditos, agora sem saída, meu corpo passou a ser a prisão. Acuados, até podia ouvi-los exalar os últimos suspiros, estavam sepultados dentro de mim, a fusão em um só cerne.

Nas primeiras horas da manhã, o sol volta a irradiar no horizonte, tudo acontece como verso e reverso. Será que algum deles virá me ver hoje? Esse vai ser mais um dia quente ou teremos um pouco de chuva para equilibrar o calor? Dessa vez, os próximos vermes virão depressa, ou passarão dias como da última vez? Na iminência da chegada, estou curioso: os novos invasores das trevas irão aproveitar os caminhos trilhados pelos antigos devoradores ou preferirão pavimentar novos caminhos, desbravando o desconhecido?

Em meio a tantas indagações, impossíveis de presumir nesse momento, estou pronto para mais um dia, fadado a ser igual ao ontem e nada diferente do amanhã, com futuro e passado compondo um mesmo presente. Numa tentativa de mudar essa realidade, ainda reuni, em vão, as últimas forças para tentar erguer o corpo desfalecido. Não pensem que queria fugir do sepulcro, apenas pela milésima vez arriscava ler a mensagem gravada na lápide, todo homem morto deveria ter esse direito.

Resta apenas, com a licença de todos, recolher-me a brevidade do sono eterno. Podem me visitar quando quiser, basta ter disposição para filosofar e depois tocar a campainha da eterna morada!

Rafinha Heleno
Enviado por Rafinha Heleno em 10/04/2019
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