O leão e o caçador

Pobre do leão. Estava ali, jogado num canto, melancólico como ele só. Pensava nela. Uma companheira de aventuras de antigamente. Tinha dia que ele sentia no peito a ausência da danada. Sentia mesmo. Sentia a falta. Até gemia de dor pela ausência. E era tão difícil não pensar nela considerando que tudo andava tão chato.

E o engraçado é que as duas coisas aconteceram quase que simultaneamente. Engraçado é forma de dizer, pois de engraçado não teve nada o desaparecimento dela. Eles iam caçar sozinhos e combinaram de se encontrar perto da nascente do rio. Ele chegou atrasado. Ela, nunca chegou. Ele ficou esperando por dias. Depois, deu uma volta na região e nada. Ela desapareceu no ar, só pode ser.

Seu coração ainda bate acelerado e seus olhos sorriem quando se lembra de quando estavam juntos. Tempo bom, viu! Mas seu corpo pesa com as dúvidas sobre seu desaparecimento. Ela foi abatida? Ela se perdeu? Talvez tenha chegado antes e pensou que ele se perdera. Mas a pior hipótese, aquela que lhe treme o corpo, dá calafrios, essa é difícil de enfrentar: “Será que ela me abandonou?”.

Ele não queria pensar nisso como hipótese. O peito lhe doía. Por que ela o abandonaria daquele jeito? Verdade seja dita que entre eles houve umas “rusguinhas”, coisa boba, nada sério. “Fico inseguro até de pensar nisso. Parece que tem algo errado comigo. Bom, talvez tenha, ela sempre reclamava que eu... Ah, melhor não pensar nisso, não vai me levar a lugar nenhum.”, pensava. Deu uma olhada na paisagem e ficou imaginando como seria bom se ela estivesse ali com ele, que tipo de atividades iam se empenhar em realizar, esse tipo de coisa, só imaginando, sem comprometimento nenhum com a produtividade do seu dia REAL.

Sabia que não devia fazer isso. Era contra produtivo ficar pensando em como passaria o dia com alguém que já se foi (por vontade própria ou não), mas não conseguia se conter. Era mais forte que ele. Era maravilhoso sonhar acordado. E geralmente o sonho era vivido várias vezes ao dia, uma repetição sem fim do mesmo filme na sua cabeça.

Não comera ainda naquele dia, mas sonhara que mataram juntos um bicho qualquer e repartiram a refeição. E a sensação de estarem juntos de novo lhe alimentou a alma. O corpo ainda precisava de substrato, mas quem liga para o corpo quando a alma pede mais, e em abundância? É uma necessidade como qualquer outra, não é?

E ficou ali a rever mais uma vez as cenas incríveis daquele dia-sonho, repetindo a si mesmo essa é a última vez, mas ciente de que um retorno à realidade era mentalmente insuportável. A dor da angustia é algo intolerável.

***

“Corre! O leão vai te pegar! O leão vai te comer!”, gritavam em uníssono. Aquela informação bugou seu cérebro. Travou as sinapses. Congelou ali, em frente ao predador. Vislumbrava naquele momento um único destino: ser retalhado e estraçalhado pelo rei da selva. Pelo menos, era o que conseguia entender pela combinação do que via e do que lhe gritavam.

Ele não queria morrer... De fato, o medo da morte, consequência de ser comido pelo leão, era maior que o medo do leão. O leão por si só não significava nada, exceto a consequência inegável que trazia consigo: esquartejamento, carnificina. Uma vida tão jovem, com tanto pela frente... a frustração de vários planos nascia pela consciência do que era estar frente a frente com a fera... a impossibilidade de cumprir o destino que traçara há tanto tempo e o sentimento de que sua vida passara em branco, sem significado, sem causar nenhum impacto nas pessoas que lhe cercavam...triste e solitário fim.

Tinha consciência de que não era mais que um pedaço de carne e ossos. Iria, enfim, cumprir seu papel de elemento na cadeia alimentar, não como predador, mas como presa. Uma frágil presa, sem garras, sem dentes afiados... Era afiado nas palavras, nos gestos, mas num ambiente diferente, num ambiente que sabia controlar. Era extremamente incômodo esta inversão de papéis, sentia-se humilhado, reduzido ao comum; tinha brios para a grandeza, para o superior.

A presa, sem condições de se defender, corre e tenta subir na arvore mais próxima. Não tinha a habilidade inata dos primos símios, e foi infeliz na conclusão do trabalho. A fera notou aquele corpo esguio se locomover ridiculamente na savana, como se estivesse a pedir por um ataque... E como não comia há 10 dias estava seriamente considerando a oportunidade... Contudo, havia algo ali que o perturbava. Tinha sentimentos contrários sobre o humano. Via-o como um bichinho de estimação, mas também se comovia com seu desespero. Quando em grupos e armados, sentiam-se confiantes; do contrário, corriam. Como pode a bravura estar tão associada a um acessório e não ser inerente ao espírito do ser que a possui? Ele sabia, e lhe causava dor admitir isso, que um corpo habitado por um espirito morto não ia longe. Ele sabia, e se angustiou por isso.

O humano, tomando conhecimento da aproximação do predador, decide que não há mais o que fazer. Ele se vê face a face com o animal. E talvez por alguma semelhança no olhar, na postura, ou pela expressão de dor em suas faces, eles se reconhecem um no outro e descobrem, naquele momento, que a carregam a mesma dor dentro de si.

Enquanto estavam a se analisar, um companheiro de viagem do humano se aproxima e, vendo aquela cena e temeroso pelo destino do amigo, opta pela opção mais segura e controversa: aponta a espingarda para fera. Afinal, pensou para si mesmo, o animal deve morrer para que o humano prevaleça. Contudo, algo estranho aconteceu. No exato momento em que o leão foi atingido na cabeça, o humano sentiu uma dor forte e intensa no peito, e caiu no chão inanimado. Para os que presenciaram aquilo, foi algo chocante, homem e animal na horizontal, derrotados. A vida acabou para ambos naquele momento.

Patricia Onofrio
Enviado por Patricia Onofrio em 27/03/2019
Código do texto: T6609182
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