A fazenda Campo Grande ficou guardada nos anéis da memória, mas nem tudo que viu, viveu e aprendeu, veio das cercanias da fazenda, ou  dos almanaques que lia.  Aprendera com o marido que tinha uma bagagem de cultura regional, sabedoria popular,  e um baú de lendas e fatos com o matiz das cores do Brasil.
A lenda da  carimbamba,  por exemplo, Corina achava que era invenção de Generoso. Ele contava que ninguém do sertão ou do mar, jamais viu a carimbamba. Só à noite se ouvia seu lamento triste, semelhante ao clangor da acauã, canglorando, canglorando, agourando morte na aldeia.
Dizem que  a carimbamba que há três mil anos canta, tem cabeça de gente e asas que não voam. É igual em malvadeza ao Cabeça de Cuia, que, ‘Sete Marias  precisava tragar. Sete virgens comer pro encanto acabar...' 
Já  estava escuro, quando Maryula ouviu a carimbamba cantar: “amanhã eu vou... amanhã eu vou...amanhã eu vou... amanhã eu vou.” Curiosa, a menina teria adentrado  a mata, e ao pisar a vegetação rasteira, o paredão instransponível da mata se abriu e a lagoa encantada apareceu. A pequena Maryula não voltou para casa. E até hoje, corre o boato, que uma velha encurvada, grasna, em noites de lua cheia, na lagoa que não é mais encantada.
— A  menina se transformou numa velhinha mesmo, vovó?
— Nunca se sabe. A velhinha faz parte da técnica utilizada pelo autor. Nas lendas e histórias infantis, as personagens não crescem, não envelhecem e não morrem. Até saem dos livros de ficção, e vão morar no mundo real.  
— Conte mais uma história, vovó!
— Hoje não cabe mais. Já é hora de dormir.
Era outono.
O vento balançava os galhos mais tenros da mangueira e dois  frutos despencaram antes da maturação. Os frutos desceram em linha reta. Tinham roupagem verde-chumbo e eram pequenos. Caiu  na cesta o primeiro chegado, o outro, no chão, dentro da vala de escoamento das águas pluviais.
— Não presta. Jogue fora!
— Só porque é filhote de manga?
— Não! Porque é peco.
— Eca!...
Caiu também uma  manga  grande e madura, e ficou presa na forquilha do tronco.
— Pegue, Chanana, seu braço alcança!
— Pego não! Está coberta de mosquitos e de  chien.
— Picam?
— Mosquito assenta nos olhos da gente. Caminha no branco do olho. E chien gruda nos cabelos.
— Saiam da chuva! — gritou Corina, lá da cozinha.
— Vamos entrar,  Ravenala, lá vem chuva de manga.
Da janela, Ravenala olhava os pássaros, nicando as mangas maduras. Elas caiam sobre o piso cimentado, varrido, lavado e escorrido por Chanana, que trazia nas mãos os calos de Corina.
—  Venha fazer tarefa escolar, Ravenala!
— Tô indo, vó.
— Quando dizem “tô indo,” as crianças ainda ficam meia hora. Esses meninos!
— Mãe, me ajuda na  tarefa!
— Não sei matemática.  Pergunte a sua avó ou espere seu pai  chegar do Banco.
— Dulcinete, o lanche!
— Já lanchei.
— Ravenala.
— Já vou, vó.
Ravenala comeu às pressas, e pôs-se  a olhar uma réstia de sol, que incidia sobre a imagem em bronze de Jesus Crucificado.
— Quem te machucou?
— Foram as pessoas que amo.
— As pessoas que amamos machucam a gente.
— Às vezes, sim!
— Estás muito ferido!
— Sou Pastor. Toco flauta para minhas ovelhas.
— Vou passar mercúrio em seu dodói.
— Faça como disseste.
A menina olhava o Tocador de Flauta pregado na cruz.  Machucado. Desprezado. Coberto de chagas. Resignado, não reclamava, não levantava a voz.
— Foste tu que tocaste flauta e uma rataiada atirou-se ao mar e se afogou?
— Aquele é outro tocador de flauta. Quando toquei flauta, quem se atirou ao mar foi uma vara de dois mil porcos.
O Tocador de Flauta não  disse que os porcos estavam possuídos por demônios. Por seu turno, embora não fosse capaz de compreender o universo humano, Ravenala insiste em desvendar  os mistérios da vida e acrescentar uma centelha de luz em sua percepção de mundo.
— O vovô mora nesta parede, mas não desce para conversar comigo.
— Teu avô mora no céu.
— Chanana disse que meu avô mora numa estrela.
— Ele é uma estrela. Olhe para o céu. Aquelas estrelas são as almas dos fiéis cristãos.
— Não consigo reconhecer minha estrela, entre milhões de seres  luminosos.  Qual delas é meu avô Generoso?
— Não faça distinção das coisas criadas, ame a todas, igualmente.
— Quero ser uma estrela!
— Não é chegada a tua hora.
  O desejo de tornar-se estrela invadiu a  pequena  a alma de  Ravenala, mas, os dias se lhe pareciam  lentos, viajando preguiçosamente nos ponteiros do tempo.
— Hora  de  almoçar — disse a avó.
— Quantas horas?
— Doze.
— Doze horas? Como pode? Só faz seis horas que o dia amanheceu?
— Boa pergunta, minha filha. Tem sentido. Como sugeres que seja?
— O dia deve começar quando o sol se levanta. E terminar quando ele se deita.
— Tens razão. Certa civilização humana contava o tempo assim: depois das dezoito horas era outro dia. É do teu agrado?
— Sim. O dia é dia, a noite é um dia que ainda não amanheceu. Noite e dia são dois dias: um claro e outro escuro. Talvez no céu seja assim.
— No céu não há noites nem trevas, tudo é tão claro como o dia. Mas não há dia. É como se vários sóis nascessem, em cada fração de segundos.
— Como no asteroide do Pequeno Príncipe?
— Sim, como no asteroide B 618.
No dia seguinte, a menina   não foi ver o amigo que mora no quarto misterioso. Deitou-se, e ficou contando as sombras das pessoas que passavam de cabeça para baixo, na calçada. Viu um menino de mãos dadas com  uma mulher. Logo, ambos desapareceram da imagem invertida, projetada na parede.
Alguém tocou a campainha. Corina atendeu.
— A senhora não quer entrar?
— Não! Só vim trazer o Bob. Pego antes das dezoito.
A mãe de Bob nunca entrava. Olhava, demoradamente, para Ravenala e dizia em seu coração: ‘Se fossem gêmeos, não se pareciam tanto: os mesmos olhos, cabelo, nariz...’  E repreendeu o pensamento pondo  fim ao  discurso de sua imaginação.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."