O BENDITO

Titubeca nasceu branquinho como a neve, próximo ao lixão da cidade. Desde pequenino olhava abismado para aquele lugar criado pelos homens.

Os outros urubus estavam felizes com toda aquela imundice, mas Titubeca não. Ele se incomodava com toda aquela esterqueira e fedor.

E o pequeno tanto criticava, que os colegas riam dele, e diziam que ele não era um urubu normal, pois não apreciava aquele imenso paraíso tão cheio de alimentos putrefatos que o ser humano havia criado para eles se deliciarem.

E Titubeca tentava explicar, seus motivos com o seu jeito ainda pueril:

– Mas amigos, somos colocados à margem da sociedade, rejeitados, porque todos acham que nós urubus somos animais sujos, e sabemos que isso não é verdade. Pois na verdade, adoramos limpeza, inclusive fazemos a nossa higiene várias vezes ao longo do dia. Quando vamos ao rio, a primeira coisa que executamos é a lavagem de nossos pés.

E os outros urubus se acabavam de tanto rir do pequeno Titubeca, e diziam a ele:

– Quem quer saber dos outros Titubeca. Tu ainda é muito criança. Olha, nós somos seres poderosos, possuidores de um robusto sistema imunológico, nenhuma doença nos atinge, porque somos imunes. Então, não precisamos de ninguém, somos uma raca superior, e você um bobo.

Titubeca ficava lá, parado, olhando para aquela vastidão de lixo sem fim, e tudo aquilo o incomodava até a alma. Aquele não era o lar dele, ele se sentia deslocado, diferente, e não suportava ver dia e noite, aquela poluição só aumentando, sem perspectivas de melhora.

Certo dia, se decidiu, e quando todos estavam distraídos comendo e se deliciando com o novo carregamento de lixo que tinha sido descarregado no lugar, ele rapidamente subiu próximo a roda do caminhão, e aproveitou para sair dali, pois suas asas ainda não eram tão poderosas para voar.

Depois de algum tempo, o carro parou em um lugar cheio de outros caminhões, e Titubeca desceu e saiu com seus pulinhos a procura de um caminho, já que os seus pés chatos, não o deixavam andar direito.

Entre os caminhões parados no lugar, ele viu um cheio de sacas, e como estava cansado, resolveu subir e se deitar no meio delas, pois o sol estava muito quente, e ele precisava tirar uma soneca. E logo, o pequeno adormeceu naquele lugar macio.

Horas depois, quando despertou, já era noite. Ele abriu seus olhinhos, e viu um imenso céu escuro e cheios de pontinhos brancos. E pensou: “Que lugar é esse? Que céu maravilhoso!” - e enchendo o peito de ar, sentiu a brisa da noite, e o cheiro do lugar. E ficou encantado, pois era um aroma diferente, agradável, que parecia limpar todo o seu pulmão. E feliz com todo aquela suave fragrância, ele desceu e saiu pulando pela areia fria do lugar, sentindo-se em estado de êxtase.

Encontrou um tronco de árvore velha, jogada, e lá se ajeitou e ficou apreciando tudo, até adormecer.

Quando os primeiros raios de sol o atingiram, ele abriu seus olhinhos, e ficou mais estupefato ainda com tamanha beleza. O som dos pássaros, e outros barulhos os quais nunca tinha ouvido. E todo o lugar era cercado de muito verde, com um vento gostoso e gelado, que batia na sua penugem ainda esbranquiçada.

Ele se esticou e saiu aos pulinhos para explorar o lugar, que ele imaginava ser o paraíso.

Logo avistou muito bichos diferentes, os quais nunca tinha visto. Uns eram grandes e vistosos, e balançavam a calda enquanto mugiam e ruminavam.

Uma vaca o olhou, assustou-se e disse:

– Que bicho feio. Cruz credo. Saí daqui coisa.

E Titubeca, sem jeito, se afastou. E quanto mais andava, mais apreciava o grande paraíso. Mesmo com os olhares estranhos, e repelentes dos animais, que pareciam desprezá-lo.

Quando em fim, chegou ao galinheiro, e viu aquele monte de galinhas e pintos correndo, ciscando e comendo, ele se aproximou, pois era o mais parecido com ele que tinha encontrado, afinal, tinham penas e bicos, só que diferentes dele, elas faziam um barulho infernal. Mesmo assim, ele se agradou, e se aproximou para conversar com os pequenos pintos que disputavam uma minhoca.

– Bom dia, amigos! Tudo bem com vocês? - Titubeca abriu um imenso sorriso para aquela turma, que o olhou estranho, e um deles perguntou:

– Valha! Como você é horroroso? Que tipo de bicho é você? Nunca vimos nada igual por aqui.

Titubeca muito simpático, foi logo respondendo, bastante empolgado:

– Sou um urubu!

O pinto o fitou com desprezo, e disse:

– Hum!! Mas, você não é preto? Os urubus que sobrevoam por aqui, são pretos como piche. Por que você é branco?

E com um sorriso imenso de canto a canto do seu bico grande e de formato estranho, falou:

– É porque ainda sou criança. Quando crescer ficarei preto.

O pinto antipático, olhando com desprezo para Titubeca, perguntou:

– E por que você pula no lugar de andar?

E Titubeca:

– Porque nossos pés são chatos, e assim, não somos capazes de andar, só pular e voar.

E o pinto riu de deboche, e os outros para acompanharem riram também, e o antipático falou:

– Saí daqui urubu! Tu é feio e nojento demais, não pode ficar entre nós. Vai lá para tua lixeira, aqui não te queremos.

Titubeca sentiu uma dor no peito, e uma vontade imensa de chorar. E o pinto continuou:

– Amigos, vamos colocar essa coisa para fora da nossa casa, caso contrário ele vai infestar tudo com a sua feiura e mal cheiro. Vamos expulsá-lo.

E o bando de pintos saíram correndo e bicando o pobre do Titubeca, que ficava sempre se esparramando no chão tentando correr, sem conseguir. E quando ele já estava no auge do desespero. Escuta uma voz rouca, que grita com os pintos, e diz:

– Parem já com isso? Estão loucos? O que estão fazendo suas pestinhas? Por que correm atrás desse pobre animal? - Era uma galinha grande, gorda e com penas bem coloridas, que chegara no local.

Gertrudes era uma das galinhas mais antigas do galinheiro, infelizmente já não tinha filhos, e vivia sozinha, e muito triste, pois não mais conseguia colocar ovos, e só não tinha ido para panela ainda, porque sua dona tinha um grande carinho por ela.

Os pintos parraram com as agressões e o antipático respondeu:

– Tia Gertrudes, só estávamos expulsando ele daqui, é um urubu, não pode ficar entre a gente. Ele é sujo, fedorento e feio. Vai empestar tudo por aqui. Nosso galinheiro não é lixeira.

Gertrudes olhou para o pinto com um olhar de reprovação pelas suas atitudes e dizeres, e ajudando o pobre Titubeca a se levantar, ela falou:

– Não façam isso. Ele é só uma criança, assim como vocês. Não podem tratá-lo desta forma. E ele não é sujo e fedorento, e muito menos feio. Parem com esse comportamento. Devem respeitá-lo e aceitá-lo.

Os pintinhos ficaram todos desconfiados, mas o antipático, ficou injuriado, com muita raiva, pois estava acostumado a sempre mandar no lugar, e nos outros pintos.

E Gertrudes falou com Titubeca, de forma bem carinhosa:

– Você está bem criança? Como se chama?

Titubeca esboçou um sorriso e respondeu ainda um pouco esbaforido:

– Sim, senhora. Estou bem. Me chamo Titubeca.

E ela lhe abriu um imenso sorriso. E o urubu se sentiu querido pela primeira vez.

Até que se ouviu a chegada de várias galinhas e do galo chefe se aproximando. E o grande galo vermelho e imponente foi logo falando:

– Que diabos está acontecendo aqui?

E antes que Gertrudes pudesse se manifestar, o pequeno antipático foi logo se pronunciando:

– Pai, esse bicho feio, fedorento e sujo entrou no nosso galinheiro, e estávamos expulsando ele, porque é um urubu nojento. E então, apareceu a tia Gertrudes e brigou com a gente. Disse que não deveríamos colocá-lo para fora de nosso galinheiro. - e o pintinho encheu o peito de ar, se achando cheio de razão.

Gertrudes fuzilou o pequeno pinto, com o seu olhar penetrante. E o grande galo falou:

– Gertrudes, não faça isso, as crianças têm razão, este animal vai poluir nosso galinheiro, tem que sair daqui. Agora! - e quando Vermelhão, o galo ia pegando na asinha de Titubeca para expulsá-lo, Gertrudes segurou a asa do galo, e disse:

– Você está muito enganado meu amigo. Ele fica. É uma criança, e vou cuidar dele. Ele não é sujo, nem imundo, nem feio e também não vai fazer de nosso galinheiro um lixão. Ele fica, e quem se meter com ele, vai ter que se ver comigo. Alguém tem algo para falar? - E olhou para todos com um olhar desafiador.

Como Gertrudes era a galinha mais antiga do lugar, todos a respeitavam, e ninguém era capaz de mexer com ela. Assim, todos, inclusive o grande galo, apenas olharam e saíram.

Gertrudes pegou na asa do pequeno Titubeca, e o levou com ela para o seu ninho, e ia falando:

– Vamos criança. Vou cuidar de você, me conte como e porque veio parar aqui. Me chamo Gertrudes. E agora você está seguro. Ninguém vai te insultar.

A partir daquele dia, Titubeca se sentiu amado e acolhido, e o melhor, não precisava viver no meio do lixo.

Mas, como era um urubu, diariamente limpava todas as sujeiras do galinheiro, devorando tudo rapidamente. Apesar de não fazer outros amigos, Gertrudes lhe fazia companhia direto. O levava para passear, e tomar banho no lago. E os dois se divertiam e riam bastante. E a cada dia que se passava, o pequeno Titubeca ia crescendo e escurecendo.

O dono do galinheiro até viu o estranho animal ali, e pensou em colocá-lo para fora, mas foi impedido pela esposa, que disse que Gertrudes estava velha, e já tinha sido muito útil para eles, e que a pobre galinha precisava de companhia, então, não era para mexer com o urubu. Afinal de contas, ele não estava incomodando ninguém.

O pequeno antipático, que já era um belo frango, um dia saiu para ver umas franguinhas novas que haviam chegado na fazenda do vizinho, e quando voltou, o jovem estava bastante abatido, parecia doente, e caiu no meio do galinheiro.

Quando Titubeca o viu esparramado no meio do galinheiro, foi até ele, e falou docemente:

– Amigo, você está doente? Venha, vou lhe ajudar. E o puxou até o ninho de Gertrudes, e lá se prontificou a cuidar do jovem e prepotente frango.

Alguns dias depois, o frango melhorou, e saiu de lá sem agradecer, pois não se conformava que um urubu havia cuidado dele. Mas, Titubeca tinha um grande coração, e ficou feliz de ver o amigo bom novamente.

Uma das galinhas fez uma algazarra, e chamou as outras para contar o que tinha ouvido. O grande galo também veio, e perguntou:

– O que houve Lusíada, por que tanta agonia? Aconteceu algo?

A galinha esbaforida da sua correria, respondeu:

– Aconteceu uma desgraça, todos os galinheiros da redondeza foram atacados por uma praga. Todas as aves estão morrendo, parece que não vai se salvar ninguém. E agora? O que vamos fazer quando essa praga chegar aqui? Acho que logo seremos nós. Ouvi falar que o dono do galinheiro e outros homens estão vindo para cá.

A agonia no galinheiro foi total, todos ficaram em polvorosa, enquanto o grande galo tentava acalmar a toda gente.

Gertrudes e Titubeca também ficaram horrorizados. E Titubeca olhou para a galinha, que ele considerava e chamava de mãe, e disse:

– Mãe, não quero te perder. Essa doença não pode chegar no nosso lar. Gosto de todos daqui, mesmo que sempre me ignorem. Aqui é o meu lar.

Gertrudes sempre bem sensata, o tranquilizou, disse que tudo daria certo. O resto do galinheiro estava louco, apavorado. Até que os homens chegaram, e entre eles, o veterinário.

De repente eles começaram a pegar as galinhas, uma a uma, e o médico olhava e as colocava novamente no chão.

Todos estavam agoniados, e querendo ouvir o laudo do veterinário, que logo disse:

– Olha seu Osório, suas galinhas não estão doentes, por algum motivo, a praga não chegou aqui, pois a essa hora, já eram para estar todas morrendo. Muito estranho mesmo.

E quando enfim, olhou para o outro lado, o veterinário avistou o urubu, que tentou se esconder atrás de Gertrudes, quando viu o olhar do homem para ele. E o veterinário, então perguntou ao senhor Osório:

– Senhor Osório! A quanto tempo cria um urubu aqui. O homem já de meia idade, olhou para o pássaro feio, e respondeu:

– Desde filhote. A galinha o adotou, e minha mulher não deixou eu me livrar dele. Por que? - indagou o homem desconfiado.

E o veterinário deu um agradável sorriso, e respondeu com uma risada de leve:

– Pois sua mulher fez bem. Taí sua resposta. Graças ao urubu, suas galinhas não adoeceram.

O homem olhou desconfiado para o veterinário, e disse que não estava entendendo. E o veterinário explicou:

– Bem senhor, o urubu apesar de muitos acharem que ele é um animal sujo e nojento, pois só come coisas podres, ele é extremamente importante para o equilíbrio ecológico, pois evita a disseminação de doenças. Eles mantém o ambiente limpo, e livre de todo tipo de praga. E assim, eliminam as bactérias que poderiam adoecer ou matar os outros animais, então, o fato de o senhor ter mantido um aqui, foi o que salvou os seus animais.

Todos escutaram aquela explicação, Titubeca ficou um pouco confuso. Antipático se sentiu envergonhado, entendeu que o urubu havia salvo a sua vida. E Gertrudes, se encheu de satisfação, pois graças ao seu filhote, todo o galinheiro havia sido poupado.

Depois daquele dia, a vida de Titubeca nunca mais foi a mesma. Pois, dali em diante, todos no galinheiro passaram a respeitá-lo, e a dar valor a ele. E também passaram a entender, principalmente, o antipático, que a aparência não é tudo. E que não devemos julgar ninguém, nem menosprezá-lo por ser diferente.

E o galinheiro se tornou o melhor e maior da região. E Titubeca finalmente, encontrou o seu verdadeiro lar, com gente que o apreciava, e não o rejeitava mais. E uma mãe maravilhosa, que o protegeu e o amou com todas as suas forças, sempre o aceitando sem criticar.

Noélia Alves Nobre
Enviado por Noélia Alves Nobre em 09/10/2018
Código do texto: T6471278
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