Um conto de como surgiu a loucura

Um conto de como surgiu a loucura.

A coruja sabia que existia muita coisa por trás daqueles vidros. De longe observava, mas não podia falar palavra alguma. Ouvira dizer que só era possível sentir a realidade depois que os vidros fossem removidos.

Eu sou apenas uma coruja - pensava ela.

Tentou muitas vezes. Ainda inexperiente, não conhecia os riscos que ali passaria. Pode experimentar verdadeiros regalos e intensas feridas. Todos os acontecimentos de sua vida ocorreram pela noite, quando estava mais viva do que nunca. Na escuridão conseguia enxergar as luzes acesas, luzes essas que não produziam sombra alguma. Sua rotina era mais previsível do que costumava ser. Repetições e mais repetições rodeavam a sua existência.

Certa vez, decidiu voar por horizontes diferentes do habitual e em seu pouso, conheceu um coala.

Bom dia - disse o aparentemente coala indefeso.

Sim, era um claro dia. Ela havia decidido também viver pelas manhãs e ali estava, totalmente acordada e cheia de expectativas.

Bom dia, eu sou nova por aqui. É a primeira vez que observo esse caminho.

Não precisa ter medo, tudo aqui é de vidro.

Como faço para conseguir sentir todas essas coisas fantásticas? - Perguntou a coruja.

Não conseguimos fazer isso. Aqui a gente apenas observa os vidros.

Que lugar triste - a coruja pensou em voz alta.

Não é triste. Tudo que existe aqui você pode chegar bem próximo, mas não tão perto a ponto de segurar. Olhe para a sua direita - pediu o coala.

A coruja olhou com desconfiança. E então o coala continuou:

Ali está a Srª. Confiança, ela é a mais discreta por aqui.

Mas eu vejo uma vaca - a coruja disse isso enquanto piscava várias vezes os olhos.

Não se engane, coruja. As coisas são o que são, não pelo o que a gente enxerga e sim pelo o que sentimos.

Ainda sinto uma vaca - confessou cheia de dúvidas.

Você pode chegar perto e pode conhecê-la, mas nunca a terá completamente.

Eu preciso ir. Quero conhecer lugares onde eu possa tocar as coisas.

Rogo-te que fique - o coala falou com tom de tristeza, convencendo assim a coruja a ficar mais um pouco.

Então me diga o que ainda preciso saber ou entender.

Olhe para a sua esquerda - a coruja olhou.

Você está vendo um dos nossos idosos por aqui, ele se chama Sr. Ódio.

Eu não consigo explicar, só sei que algo em mim não gosta dessa tartaruga.

Por enquanto vc apenas entende que é uma tartaruga. Quando abrir os olhos para o mundo, saberá que não é apenas uma tartaruga e entenderá o motivo pelo qual não gosta dele.

Então você está dizendo que eu também não sou uma coruja?

Essa percepção é sua. A maioria dos que vivem aqui fica cega por causa do ódio. Mas você não.

Então quem sou?

Você é a coruja.

E como você me sente?

Eu ainda não te senti.

Me diga se pelo menos sabe quem realmente sou.

Claro que sei. Eu sei sobre todas as coisas.

Eu só enxergo um coala que se acha o sabichão.

É preciso que esteja preparada, coruja. Tudo em você está mudando. Logo entenderá a realidade.

A coruja estava confusa, afinal de contas, tudo que havia aprendido teria se tornado duvidoso. Como um sentimento poderia se apresentar em forma de vaca, por exemplo.

Veja, senhor coala: ali tem um leão, ele pode sair dali se quiser, o seu vidro é muito fino e tenho certeza que ele é muito forte.

Claro que ele é forte, mas ele escolheu ficar.

Então todos vocês podem escolher viver aqui?

Não. No entanto, de alguma forma todos decidiram vir.

E eles podem ir embora daqui quando quiserem?

De forma nenhuma. Quando corremos atrás da liberdade, nos tornamos prisioneiros dela.

O coala sempre tinha as respostas na ponta da língua, o que era muito intrigante. Como alguém tão sábio estava preso em uma gaiola de vidro?

- Como veio parar aqui? - A coruja perguntou, mas por um instante duvidou da resposta do seu novo “amigo”.

- Eu estava procurando alguém que não conheço.

- Como assim alguém que você não conhece?

- Eu saí em busca de novos contatos, quis conhecer outros seres e outras espécies.

- Você conheceu outros lugares? -Ela fazia muitas perguntas, pois as dúvidas não cessavam.

- Sim, conheci alguns outros lugares, mas decidi não permanecer. Eu não me identifiquei com nenhum.

- Eu não acredito em você. Como alguém pode trocar a liberdade por uma prisão?

- Fazemos escolhas constantemente e nunca Paramos para mensurar as consequências. Além do mais, todos os seres livres que eu conheço, estão presos de alguma forma a algo ou alguém.

- Ahhh… mas é muito diferente! Como é bom ter motivos para estar preso dentro de alguém.

- Coruja, essa é uma informação corrompida que te ensinaram. Entenda: o amor é o maior dos sentimentos e só ele liberta. Se você está preso à alguma coisa, então você nunca amou.

- Eu acho que estou te entendendo. Então quer dizer que todos vocês estão presos aqui por falta de amor, não é mesmo?

- Sim, coruja. Eu disse que você começaria a entender.

- O amor é sábio e usou o seu poder para não se prender.

- O amor é ingênuo. Ele é capaz de se ferir para promover a felicidade. - Nesse momento o coala olhou para o horizonte e deixou duas pequenas lágrimas rolarem pelo seu rosto.

- Me fale quem é o amor e eu prometo que trago ele até aqui.

- Você não precisa fazer isso.

- Vamos, me diga. É um gato? Ou um cavalo? É uma formiga? Já sei, talvez seja um golfinho, eles são muito fofos.

- Querida, aprenda de uma vez por todas: se quer mesmo encontrar o amor, então não procure fora.

- Mas você disse que ele não está aqui dentro.

- Eu não disse isso. O amor não é um prisioneiro, mas ele nunca fica solto. Eu tive uma ideia!

- Então conte-me!

- Quero que quebre o vidro do leão e saia em busca do amor. Como você já percebeu, a camada que o prende é muito fina e facilmente você a quebrará.

- Se eu tenho você, por que escolheria o leão? Eu vou quebrar o seu vidro! Mas antes, quero que me responda uma última pergunta.

- Se realmente vai me soltar, eu te responderei qualquer coisa. Pode perguntar.

- Quem realmente você é?

- hahahaha - O coala riu muito. E respondeu:

- Você é tão previsível. Como não percebeu quem sou? Eu sou a certeza.

- Eu sinto que às vezes a certeza é capaz de ferir. - A coruja falou enquanto pensava em estratégias para quebrar aquela camada de vidro.

- Se quer ser feliz, então não ande com a certeza. Sim, às vezes ela machuca.

- Tudo que quero agora é poder andar ao seu lado e te sentir.

- Então não demore, quebre logo esse vidro! - a coruja pensou e teve a seguinte ideia: ela voou até a árvore mais alta para pegar impulso. O seu plano era voar o mais rápido que pudesse em direção à gaiola do coala e com o impacto, quebrar aquilo que o impedia de sair. A primeira vez foi muito assustadora, ela sentiu um arrepio misturado com um gelo em sua pequenina barriga, mas com coragem e boa vontade se arriscou.

- vooooooooooooooooonnn, paaaaaaac! Foi o barulho feito na primeira tentativa. Inevitavelmente, ao bater a cabeça, a coruja caiu no chão. Mas ainda se sentia determinada e voou novamente para a árvore. Em seguida, se jogou em direção à gaiola. Mais uma vez ela caiu, porém, conseguiu rachar o vidro. Ela já não tinha as mesmas forças que tinha na primeira vez, mas estava feliz porque faltava pouco para conseguir o que queria. Ainda mais fraca, tentou outra vez. Aquela barreira que impedia o coala de sair era muito resistente, ela começou a pensar que não conseguiria, mas desistir não era uma opção para ela. Então resolveu tentar pela quarta vez. Usou o restante das forças que tinha e de novo se jogou em direção ao coala. Logo após ela se jogar, o seu novo “amigo” (maldosamente ou não) tocou nas rachaduras e misteriosamente os vidros começaram a despedaçar, fazendo com que a coruja caísse por cima dos cacos de vidro caídos dentro da gaiola. Depois desse acontecimento, o coala fugiu e imediatamente uma nova camada cobriu o espaço, deixando assim a coruja presa e ainda desacordada. Era noite e por ali não existia mais ninguém que pudesse ajudá-la. As chances para a coruja diminuíam, será que estava muito machucada? Ou será que ela estava apenas dormindo devido o cansaço?

- Ei, desculpa incomodar, eu vim aqui dizer que você é muito corajosa e quero cuidar de você. - Milagrosamente essa voz apareceu do acaso e começou a repetir a mesma frase durante umas duas horas seguidas. Não questione os detalhes, mas em algum momento a coruja conseguiu ouvir e responder:

- Coala? Por favor me ajude! - Rapidamente ela lembrou de tudo o que havia acontecido, ela estava consciente, mas as suas forças não respondiam ao comando do cérebro.

- Eu não sou o coala, eu sou um tatu. Mas na verdade eu me apresento como a beleza. Eu consigo enxergar tudo, inclusive no escuro. Vou te salvar porque depois disso, você poderá me deixar ainda mais bonito e antes que surjam dúvidas na sua mente, quero dizer que sim, eu sei quem és. Não quero que se esforce para falar, apenas confie em mim. - O tatu ficou ali durante horas esperando até que a coruja pudesse responder aos comandos. Ele gostava de conversar e durante todo o tempo, ele não parou de falar. Até que ele percebeu que a coruja estava tentando se comunicar.

- Você quer me dizer algo? Tente e eu prometo me esforçar para entender. - Então a coruja conseguiu dizer algo mais ou menos assim:

- Eu preciso fazer xixi.

- Faça aí mesmo, do jeito que está e enquanto faz, se esforce para tocar no vidro, bem aqui em direção à minha voz. - O tatu sabia que era só um delírio da coruja, onde já se viu uma coruja sentir vontade de fazer xixi? Mas ele também tinha consciência de que aquele delírio era importante para ela descobrir que não era uma simples coruja, ela era o maior de todos os sentimentos, então podia sentir qualquer coisa.

- vroccccc - Era um barulho de algo se abrindo. Ao perceber que havia espaço para puxar a coruja, o tatu imediatamente o fez.

- Você é incrível, coruja. Simplesmente resista. Eu vou procurar ajuda e prometo voltar pela manhã. - O dia foi clareando e logo notou-se que todos os animais haviam fugido. Não existia nenhuma vida por perto, os vidros haviam desaparecido. Dava para sentir melhor o vento e o cheiro das flores. O tempo passou e o tatu definitivamente não voltou. No entanto, uma surpresa boa aconteceu. Apareceu um esquilo, tão pequeno e tão sensível. Estava perdido. Curiosamente ele tinha uma grossa camada de vidros escuros nos olhos e isso impedia que enxergasse. Ele era sábio e sentia muito, não foi difícil encontrar a coruja quase sem vida ali no chão.

- Caramba! Eu sei quem você é. Mesmo não enxergando, eu posso te sentir. Eu esperei você chegar durante todo o tempo que vivi aqui, hoje eu só quero agradecer por ter nos libertado, isso mesmo, você nos salvou desse mundo, mais conhecido como a selva de vidro. - Se o tatu falava demais, o esquilo falava mais ainda e ele continuou:

- Quem criou esse lugar foi o homem coração de gelo. Um cara solitário, que queria impedir a felicidade do mundo. Então todos que paravam por aqui, de alguma forma ficavam presos a esse lugar maldito e destruidor de sentimentos. O único sentimento capaz de destruir o homem coração de gelo é o amor. Quando o amor entrasse aqui, automaticamente o coração dele iria derretendo e aos poucos os vidros iriam perder o poder de regeneração. - A coruja entendia tudo, mas não conseguia proferir palavra alguma, então ele soltou mais informações:

- Olha você aí, coruja.. caiu na conversa da certeza. Entenda bem o que direi agora: nem sempre a certeza está do lado da verdade, mas não te julgo. Você é ingênua e não havia motivos para duvidar. À essa altura, você já deve saber quem realmente és. Sim, você está certa, você é o amor e é por isso que deve estar muito ferida, você salvou a todos nós e não se preocupou com você mesma. Saiba de uma coisa, você é incrível! - E prosseguiu:

- Sinto cheiro da beleza, ela passou por aqui, não foi? Um tatu que fala pelos cotovelos. Tudo aqui era muito previsível, por isso eu suponho que ele deve ter passado por aqui. Foi ele quem te tirou do vidro, não foi? A beleza também pode salvar o amor, mas ela não permanece e foi por isso que o tatu não voltou para te salvar. - Enquanto falava sem parar, aquele pequeno esquilo tirou um frasco que estava escondido no seu corpo, esse frasco continha uma pequena quantidade de um líquido laranja cintilante e o esquilo já foi dizendo:

- Eu esperei um tempão por isso. Você não sabe o quanto foi difícil recolher essas lágrimas. Aqui eu tenho um pouco de lágrimas da atenção, do carinho, do respeito, do cuidado e do perdão. Se você tomar, será curada. Infelizmente não fiz o cálculo certo ou não fui precavido o suficiente para ter a quantidade que fosse suficiente para te restaurar. - Então o esquilo despejou aquele líquido no bico da coruja e rapidamente ela foi ganhando forças e conseguiu falar:

- Obrigada! Mas você fala demais. Não precisa se apresentar, eu já tenho noção de quem é você. Lou, não é? - O esquilo fez que sim com a cabeça.

- Eu vou quebrar os seus vidros. Eu sou a única que posso fazer isso.

- Não seja tola, agora você está agindo como o amor e não como coruja. Use esse pouco de energia que ganhou para fugir daqui, vamos, me coloque em cima das suas asas e me leve com você.

- Eu nasci para ser amor e não posso agir de forma diferente. Sei que posso morrer, mas vai doer mais ainda se eu não conseguir fazer meu trabalho completo, vai doer ainda mais se eu viver uma vida em um lugar onde você não possa enxergar. Por isso…

- Placc, placc - A coruja usou o restante de suas forças para quebrar os vidros que cobriam os olhos do esquilo.

- Veja, esquilo! Agora você também é livre. - E antes que a coruja falasse mais alguma coisa, uma grossa camada de vidro cobriu seus expressivos olhos e ela deixou de enxergar.

- Por que você fez isso? Eu já estava acostumado assim. Agora vou ter que te arrastar até encontrarmos uma saída e suprimentos para você se regenerar. - O esquilo falou em desespero.

- Isso é irreal. Você sabe que não terei forças para sair. Estou te libertando, por favor, vá embora e me deixe quietinha aqui. - Quando o esquilo passou a enxergar, viu que a coruja estava muito ferida. Suas penas estavam molhadas de sangue e o chão todo vermelho, ela não conseguiria ir muito longe. Então, o esquilo ouviu as últimas palavras ditas pelo amor, desde então, ninguém nunca mais o encontrou. Sabe-se apenas que ele ficou cego e gravemente ferido. E as últimas palavras foram:

- Ei, o amor pode até libertar o mundo inteiro, mas só a Lou cura. De agora em diante, todos te conhecerão como Loucura. Saia daqui e cure o mundo. - E sem querer esperar para ver o amor sofrendo ou até mesmo morrendo, a loucura saiu às pressas e até hoje anda curando o mundo.