O espelho e o reflexo

Eu mais que ninguém sei que o tempo sempre passa, para uns ele passa em forma de alivio, para outros ele é cruel. Eu sempre passei minha vida toda refletindo aquilo que me era imposto, refletia a solidão, a tristeza, as alegrias, a beleza singela, mas eu nunca mostrava o que eu realmente sentia, sempre ficava a sombra dos sentimentos das pessoas.

Havia um sentimento em especifico que eu nunca tinha sentido antes, todos chamavam de amor. Alguns diziam que ele doía, outros diziam que ele te completava e que um pouco dele que se provasse era suficiente pra vida toda. Eu perguntava todos os dias aos deus se realmente existia tal sentimento, se eu poderia ou daria conta de senti-lo, dizem que os poetas sabem escrever sobre o amor, mas que nenhum deles realmente provou dele e o desejo se transforma em poesia.

Todas as noites eu refletia a escuridão e o silencio de um quarto vazio, podia ser um quarto qualquer de casa, de uma pensão, de um bordel, a vida era tão inexplorada... eu queria saber de tudo um pouco, mostrar meus sentimentos e refletir mais que aquele quarto.

Certa noite uma donzela de pele vermelha e cabelos rebeldes entrou no quarto junto com uma figura com pele de mármore, cabelos e barba mais vermelho que o sangue. Eles se fundiram entre seus braços, se beijando, cada palavra que ela dizia em seu ouvido ele se derretia mais por ela, eu apenas refletia o que eles diziam e faziam. De certa forma queria aquilo também, queria sentir, tocar, explorar e ter tal sentimento.

Eu apenas fiz meu trabalho aquela noite suspirando a má sorte que os deus decretou sobre minha passageira existência. Pela manhã, um deles ficou aborrecido por terem que se despedir, a figura de homem fez promessas e promessas que voltaria e a donzela de pele vermelha se debulhava em lagrimas enquanto esperava seu amado de cabelos vermelhos regressar e cumprir sua promessa.

Dias e noites se passaram, o inverno chegou e foi embora, certa noite a mocinha entrou correndo no quarto sentou-se ao pé da cama e se derreteu-se em lágrimas, eu fiquei a pensar: O que será que poderia ter acontecido? O tempo passou ela foi ficando cada vez mis cabisbaixa, até que se recolheu em seu leito febril e foi se definhando dia após dia, a beleza e a sagaz juventude que antes eu refletia passou a ser um reflexo vazio, doente e com olheiras fundas, a pele da moça que antes era vermelha foi ficando pálida, até que um dia ela deu seu último suspiro, sua mãe inconsolável perguntou ao médico o que levou ela a morte e ele disse que ela morreu de amor. Eu fiquei confuso, como que um sentimento tão sublime pode ser tão letal? Aos poucos o quarto da jovem foi se enchendo de poeira e teia de aranhas, até que os moveis foi desaparecendo aos poucos, me cobriram com um lençol branco e por dias eu refletia apenas o nada.

Quando tiraram o lençol eu estava em um ambiente barulhento, cheio de objetos velhos e eu estava com uma etiqueta. De fato eu passei a conhecer melhor a vida, passei a conhecer mais que um mero quarto, me deliciava refletindo toda aquela agitação da cidade e as pessoas com suas diferentes formas, jeitos, já nem me lembrava mais do tau amor que todos falavam e almejavam.

No final da tarde daquela sexta feira eu estava dormindo, já estava todo embaçado pela poeira, só refletia uns borrões coloridos até que uma mocinha que parecia uma boneca de porcelana entrou na loja com sua roupa de bailarina, passou um pano em mim e olhou seu reflexo, deu o mais belo dos sorrisos e disse com toda convicção numa voz delicada e alegre

_Eu vou levar esse aqui!

Fui instalado em um quarto claro e limpo, na minha frente não existia nada além de um aparelho que tocava as mais belas músicas em piano e violino.

A jovem então entrou e começou a dançar, ela fazia isso três vezes por semana, as vezes ela ficava lá por horas até se satisfazer com seu resultado, eu por outro lado memorizava cada movimento e som. Todas as vezes que ela entrava no quarto enchia-me de alegria e sentia-me completo, passei a refletir suas curvas cheias e seus lábios carnudos, não deixava nenhum centímetro dela sem nitidez ou sentido.

O tempo passou e cada vez mais eu sentia saudade quando ela ia e alegria quando ela voltava e contava os dias para ela dançar pra mim de novo. A dança que era com movimentos simples de bailarina foi se tornando algo sensual e libidinoso, nunca tinha sentido aquilo antes, não sabia como rotular o que sentia por ela.

Certa vez contei tudo o que sentia para o Senhor Vinil, ele dando gargalhadas como se fosse uma coisa obvia disse que era amor, eu não acreditei, afinal, ninguém pode dizer ao certo quando se ama alguém ou muito menos quando outra pessoa está amando e eu já estava cansado de procurar pelo amor e já tinha desistido de encontra-lo...um espelho como eu não poderia sentir tal sentimento que era somente reservado para alguns em especial. Então o senhor vinil disse que o amor não tem restrição, não tem quantidade certa, não tem hora nem faz distinção das coisas ele é cedo surdo e mudo.

-Meu jovem espelho ... agora só nos resta saber se esse amor será sua ruina ou sua felicidade, rezo para que seja reciproco. Disse o Senhor Vinil num tom sombrio e calmo. Apenas aceitei de coração aberto a oportunidade de amar, o fato de que eu podia amar. Queria contar á ela o que eu sentia, mas talvez fosse cedo, eu nunca saberia ao certo o tempo exato e eu não podia simplesmente falar com ela.

Certa vez ela entrou no quarto e despida observou seu corpo através dos meus olhos e se tocou, eu sentir que corei, ela levou a mão no rosto sem entender por que estava corada.

Em uma manhã quente de domingo a jovem começou a dançar, eu estava maravilhado com seus movimentos sensuais, não me aguentei e acenei para a moça, ela se assustou e em um desequilíbrio desastroso ela caiu, a moça ficou sentada por alguns minutos pasma e eu em pé diante dela sem saber o que fazer, ela se levantou bem devagar eu passei a mão em seu rosto através do reflexo ela se afastou com um olhar de reprovação e se virou, pegou um copo de agua e taco-me, nem tive a chance de falar o quanto eu a amava, fragmentei-me por todo o quarto sentir um pedaço de mim em seu pescoço ela caiu em meio aos meus estilhaços se cortando ainda mais.

Eu sabia que nunca mais voltaria ser eu mesmo, nunca mais refletiria a vida ou as pessoas, as vezes o amor tem disso, escolhas erradas, escolhas egoístas e por mais que evitamos...sempre saímos machucados e nunca mais voltamos a ser o que éramos antes. O amor é como o veneno o pouco dele que se prova é o suficiente pra uma vida inteira. Aquele dia eu me dei conta que meu espirito morreu junto com aquela moça.

Poliana Fernandes
Enviado por Poliana Fernandes em 21/06/2018
Código do texto: T6370223
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