A fábula dos dois enxadristas
Dizem que toda boa fábula começa com era uma vez. Mas não essa, afinal, essa é uma fábula moderna, ainda que fale sobre a não tão moderna arte de jogar xadrez. Tantas guerras foram pensadas na frente de um tabuleiro e ensaiadas com peões e cavalos, entre conversas tortas de bispos e tramoias de reis. E ainda que hoje as guerras se travem entre figuras decrépitas e caricatas, jogando e brincando com botões e painéis luminosos, nem toda a tecnologias, videogames e aplicativos conseguiram apagar o prestígio dos velhos jogos de tabuleiro. E no fim reduzem-se quase sempre à mesma e velha disputa de egos. Por sorte não faz guerra por aplicativo, pelo menos não por enquanto e até mesmo o velho e bom xadrez anda hoje pacato e manso, quase esquecido, como um senhor de idade que depôs as armas para viver na glória da aposentadoria. Ah, mas de quantas coisas terríveis não é capaz o homem apenas para não ser derrotado em uma partida ou perder uma rodada. Nem tudo no mundo é uma grande novidade, especialmente nos jogos.
Conheceram-se em um aplicativo de distrações e divertimentos e logo migraram para uma conversa mais íntima e pessoal. Apesar de alguns desencontros, não tardaram a jogar uma primeira partida, descompromissada, curiosa, mas, sem dúvida a mais eletrizante que ambos travavam em meses. Tão logo os oponentes se apresentaram e se conheceram, souberam logo que ali lidavam com jogadores habilidosos e de alto nível. E mesmo sabendo, como bons jogadores, que a expectativa é a inimiga da vitória, sonharam, em segredo, com partidas memoráveis. Encontrar quem jogue damas ou carteado é fácil, mas, a história ensina que as boas batalhas de xadrez foram sempre raras e os oponentes escassos, talvez até, cada vez mais. E como fossem jogadores de bom nível e interlocução, natural que se enfrentassem diante de um tabuleiro de xadrez.
Já nos primeiros movimentos, os jogadores reconheceram-se e quase de imediato surgiu uma genuína e autêntica admiração mútua das habilidades e talentos. E entre conversas, brincadeiras e até, vez ou outra, algumas provocações naturais de uma saudável disputa, a sinceridade quase os fazia esquecer de que estavam em jogo. Não, definitivamente, aquilo não era uma batalha, afinal, os tempos são outros, e nenhum conflito ou guerra está mais para ser decidida no tabuleiro. Aquilo era apenas uma divertida e descompromissada partida de xadrez. Decidem, portanto, jogar sem blefe nem trapaça. Afinal, como falamos de jogadores de alto nível, pessoas de boa conduta e caráter, natural que mantivessem padrões éticos e morais acima da média, dispensando, assim, qualquer tipo de comportamento contrário ou inadequado ao código e à moral das boas partidas. Os melhores jogos, bem como os melhores oponentes nunca devem deixar de lado seus compromissos éticos mais profundos.
Mais do que o compromisso com o jogo ou o placar, a conversa é que embalava as primeiras jogadas de uma partida descontraída e descompromissada, entre concertos de Mozart, movimentos de Beethoven e noturnos de Chopin. Talvez houvesse até uma lareira crepitando e um confortável assento numa poltrona de couro, não falássemos nós de um encontro de verão. Lá fora, aliás, o carnaval se aproximava com a sombra convidativa da folia. A partida seguia curiosa e tranquila até que se deram conta de que havia mais palavras sendo jogadas naquele jogo do que peças sendo movimentadas no tabuleiro. A cada movimento mais ousado ou arriscado um vencedor se avultava, não sem o embaraço, talvez até culpa, por uma vitória iminente ainda não anunciada. Um recuo constrangido, um pedido de desculpas e o jogo seguia adiando o inevitável. Impossível jogar sem vencedor. Somente a vitória traria a recompensa e a glória? Amadores não levam recompensa para casa.
Mas, os bons jogadores são jogadores e jogarão sempre, viciados em simulações e blefes, incapazes de dizer a verdade, ainda que a prometam ou simulem. Talvez, tivessem se conhecido em uma mesa de bar ou sala de aula, em uma conversa descontraída na fila da padaria, tais paixões mesquinhas não teriam aflorado, mas o jogo impõe sempre e inevitavelmente suas regras e sua lógica perversa e cruel. Jogar é sempre perigoso, mas também é preciso jogar. A habilidade e o talento no jogo, no entanto, nem sempre trazem a maturidade e a frieza, tampouco garantem a satisfação e felicidade com o resultado final. Grandes partidas requerem sacrifícios e infringem penas, às vezes até alguma perda.
Logo o silêncio se abate entre os enxadristas. Não que lhes faltasse assunto ou interesses comuns. Tratava-se apenas daquele silêncio forçado e quase vencido para não entregar a próxima jogada. Estudam e analisam cada peça, antecipam cada gesto, esperam a reação do adversário e se comprazem com as vantagens e com a expectativa de seu próximo movimento. Quem sabe talvez já tivessem enxergado o suficiente por dentre e debaixo das máscaras e armaduras, depostas ao chão, mas ao alcança da mão. Quem sabe, em tão pouco tempo, e perigosamente, já tivessem enfim se entendido para além do jogo. Rodadas inteiras se seguem na mais absoluta e total ausência sonora, em uma longa e dilacerante espera, uma complexa queda de braço em que desejavam ao mesmo tempo a vitória e a preservação do adversário. A cada jogada desatenta ou descuidada, de um lado e de outro, os enxadristas retomavam a esperança de levar o jogo.
Ocorre que mesmo a partida mais eletrizante de xadrez a certa hora também cansa e mesmo os mais experientes e treinados jogadores uma hora eventualmente jogam a toalha e desistem de jogar. Claro que nem todos jogam apenas para vencer, embora raros sejam os aceitam jogar unicamente por distração e passatempo. E se não desejassem mais jogar? E se quisessem desistir daquela desgastante e interminável partida? Seria possível restaurar a verdade, deixar de lado as interpretações? Um jogo, antes de tudo, deve ser divertido. Não que tal ideia não tivesse ocorrido a cada um dos lados do tabuleiro, mas o orgulho impedia soluções dessa natureza e assim acabavam impelidos novamente àquele jogo, mesquinho e provocador. À medida que a tensão crescia, surgia e aumentava também a vontade de atirar ao longe o tabuleiro, abrir mão da partida e levar a bola para casa. Quem sabe, talvez, àquela rodada já se encontrassem de tal maneira comprometidos com o jogo que não podiam mais simplesmente desistir.
Mesmo com as jogadas reduzidas e amarradas de ambos os lados, o placar parecia cada vez mais impreciso, mas, seja como for, com um destino não muito feliz. Algumas jogadas após o primeiro e falso alarme de xeque, o desfecho permanecia distante e incerto. Voltam a trocar algumas palavras quando o silêncio se torna insuportável. O jogo se encaminha para o reconhecimento do impasse. Aliás, naquele ponto era como se jogassem sem interesse, muito mais por brio do que curiosidade do placar ou interesse no prêmio, não obstante a firme e inabalável admiração entre os oponentes. A firmeza e dignidade com que mantinham o jogo, apenas reforçava o respeito entre os jogadores, mas não sinalizavam qualquer renúncia. Ninguém haveria de desistir. Talvez não houvesse vencedor, talvez fosse preciso que algo se abatesse sobre o tabuleiro para pôr, enfim, um fim àquela partida que se arrastava por dias, talvez até semanas, sem qualquer sinal de resolução. Empenhados e entretidos com o jogo, haviam perdido a percepção do tempo e das horas, o que, deve-se mencionar, é um fenômeno cada vez mais raro em um mundo de partidas instantâneas e apressadas.
Entre as poucas peças que restavam de pé, eis que enfrentam-se agora entre olhares. Os enxadristas fitam-se profunda e longamente, talvez compreendendo e, enfim, aceitando o impasse em que haviam se metido, muito embora nada dissessem. Foi então que, como que por magnetismo ou fatalidade do próprio jogo, avançam as casas e projetam-se furiosamente em direção um do outro, entregando-se e rendendo-se, enfim, em um intenso, longo e ardente beijo de vingança, orgulho e de tréguas. E por sobre aquele mesmo tabuleiro, se amam e se amassam loucamente como talvez já desejassem há muitas rodadas. Entre mãos afobadas, trêmulas, e peças, agora de roupas, que voam, uma pílula azul cai sobre uma casa e anuncia o xeque. Uma virada de jogo espetacular. A mesa cede e o tabuleiro se espatifa. O bispo se quebra, a torre se parte, reis e rainhas rolam para longe no chão entre peões descartados. E ambos, enfim, concluem que é, essa, afinal, a melhor jogada possível, a melhor virada do jogo e o melhor desfecho para uma partida interminável e desgastante. Talvez tenham ido além de um simples beijo, se a classificação indicativa de uma fábulas nos permitisse ir adiante. Mesmo os mais empenhados e comprometidos enxadristas, no fim, quem sabe, prefiram uma boa rolada de ringue.
[...]
Os dois enxadristas são vistos andando de mãos dadas entre os jogadores de damas e dominós da praça. Estão em profunda sintonia e comungam, enfim, de uma intensa e cúmplice felicidade. E riem-se dos muitos jogadores que talvez, e secretamente, desejassem outro desfecho para seus desafios e fazem da disputa o álibi do desejo. Mesmo os velhos ainda e também jogam. Mas, para nossos antigos oponentes, o xadrez foi definitivamente aposentado e já não sentem mais falta dos antigos jogos. Nada de peões, cavalos e bispos, nem de rainhas e reis, nem de papéis, vendetas ou de guerras acirradas sobre tabuleiros.
Chegando em casa, depois de um breve e agradável passeio no parque, recordam-se, entre taças de vinho e pedaços de pizza, dos velhos jogadores da praça e confessam, silenciosamente, alguma nostalgia discreta e sincera daqueles enfrentamentos de outrora. Sentiriam saudades dos jogos de tabuleiro? No fundo do maleiro do guarda-roupas encontram uma relíquia perdida, coberta de poeira e desgastada pelo abandono. Os enxadristas ensaiam jogar agora banco imobiliário...
Não importa o nível do xadrez e a qualidade do xeque, o banco imobiliário uma hora chega para todos.