O primata e o progresso

É a história de um primata que dormia em um lugar esquecido do continente africano. Ele se levanta e, atordoado, vê algo que o deixa fascinado. Não, não era um monólito escuro enviado por uma civilização avançada (ao menos não até onde sabemos). Ele fica atordoado com uma luz brilhante, enérgica e apaixonante. Ele se lembra muito bem que aquela luz esférica esteve ali todos os dias de sua vida, escondendo-se e se revelando todos os dias.

O primata, entretanto, passa agora a olhar para a luz com uma visão diferente. Ele, que até então nunca havia sentido aquele sentimento antes, observa que aquela luz torna tudo possível. Como uma mensagem vinda diretamente dos deuses ele vê que é sim possível mudar o que há a sua volta. Ele vê que a realidade pode moldar-se à sua vontade. Que não há leis que impeçam sua liberdade de pensar e agir. Ele então percebe que essas leis são apenas aquelas que ele cria.

Se aquela luz esférica, enérgica e apaixonante viaja, em um dia, de um horizonte a outro, por que ele não pode? E, então, ele se torna um desbravador. Ele conquista o mundo. Passeia por cada local, seja o quão longínquo for.

E por que ele não vai além? Por que ele necessita daquela luz para viver? Por que ele, tão inteligente primata, não cria uma nova lei: existirão luzes esféricas, enérgicas e apaixonantes, mesmo quando aquela luz não estiver presente. Mas, há outro problema: por que ele, tão inteligente primata, necessita viver na insegurança de não ter o pão de cada dia, tendo que estar a todo instante em busca de novos alimentos? E daí, esse primata, absurdamente esperto e fascinado por aquela luz esférica, enérgica e apaixonante do início, cria uma nova lei: ele não precisará estar sempre em busca de novos alimentos em lugares diferentes. Agora, existirão alimentos sempre a sua disposição.

Sim, ele agora dita as leis que o mundo deve seguir. A realidade não lhes dar mais normas, ele agora legisla, julga e executa as leis da realidade. O primata agora é a Lei. E então, esse tão inteligente primata, não se satisfaz com isso. Oras, por que diabos atravessar o mundo dominando a Luz e a fome é suficiente? Ele é a Lei, ele é ambicioso. Ele pode tudo. “Eu sou”, ele diz.

Qual o próximo passo? Ele não sabe. Ele é tudo, sabe tudo e pode tudo. Mas ele percebe algo que não consegue: ele não dura para sempre. Oh, não! Esse tão inteligente primata deve de algum modo, durar. “Tudo o que fiz até então, foi em vão? Dominar o mundo, legislar sobre a Luz e a Fome foi em vão?”, ele pensa desesperado. Aquele tão inteligente primata, que poderia facilmente ser chamado de Gilgamesh, teria de se tornar imortal. Como ele, onisciente, onipotente e onipresente, poderia deixar-se acabar? Se ele não vencesse a morte, ele não seria um tão inteligente primata.

Obcecado com essa questão, aquele tão inteligente primata constrói seu rosto em pedras, escreve em paredes de cavernas e em papiros. Com seu próprio suor ele constrói obras que nunca sonhara: estátuas gigantes, pirâmides e quadros artísticos. Livros com toda sua sabedoria para os próximos primatas que fossem tão inteligentes quanto ele. Aquele primata, não satisfeito, crava sua marca numa pálida luz que brilhava no céu à noite. Ela não era tão forte quanto à primeira, mas ele o fez.

E depois de muitos anos em que esteve garantido que ele dominou o Mundo, a Luz e a Fome, ele agora faz algo que jamais outro animal conseguiu fazer: ele dominou a Vida. Ele não pode morrer, não mais. Ele apenas é.

Porém, quando já velho e cansado, olhando tudo que havia feito ele olha para aquela luz esférica, enérgica e apaixonante de outrora. Ele vê algo diferente. Ele percebe que até ela um dia irá parar de brilhar. Ele percebe que suas estátuas, escritos, pirâmides, quadros e etc. estão se desgastando. Ele percebe que tudo o que criou e até mesmo o que mais admirava, isto é, a Luz, morrerá. O tão inteligente primata percebe que sua vida está condicionada aquelas estátuas, pirâmides, quadros e escritos. O tão inteligente primata percebe que é falível e que as suas leis eram apenas ilusões.

Fatigado, ele se deitou de lado… Tentou sorrir. Ao menos um último sorriso para que os outros não vissem sua fraqueza. E então, sob o brilho daquela luz esférica, enérgica e apaixonante que tanto admirara, ele nos deixou.