SAMURAI - O DRAGÃO INTERIOR
O DRAGÃO DO TROVÃO
Ricardo nasceu em Tupã-SP, em 1967, muito depois do desembarque dos primeiros japoneses no Brasil. Ainda pequeno mudou-se com a família para a região do Grande ABC, numa das idas e vindas em busca de uma vida melhor.
Com o passar do tempo, tornou-se apreciador da cultura japonesa, especialmente a culinária, intensificado por visitas ao bairro paulista da Liberdade, recanto dos orientais.
A arte japonesa lhe fascinava, seus objetos de uso diário ou cerimonial que mais parecem de decoração de tão cheios de detalhes e cores. Entretanto, nada causava tanto fascínio quanto a imagem de dragão, em desenhos, camisetas, estátuas, tatuagens.
Interessava-se pela história do povo japonês, e dos samurais em especial, com suas roupas, armas, perícia nas artes marciais e de guerra. Nunca havia parado para pensar porque gostava tanto desses guerreiros se odiava qualquer tipo de violência. Jamais pensara em praticar artes marciais.
À trabalho, teve oportunidade de viajar para o Japão. Nunca ficara tão eufórico. Poder ver de perto tudo o que admirava. Imaginava ver espetáculo de kabuki, cerimônia do chá, uma gueixa.
Durante a viagem procurou praticar o pouco de meditação que assimilara lendo sobre o assunto. Relaxou-se na poltrona, respirou fundo e soltou o ar devagar. Por uns instantes assustou-se por ouvir o pulsar do coração tão alto.
Acordou sobressaltado, garganta seca, suado. Olhou a volta. Estava no avião. “Mas foi tão real. O cavaleiro, a armadura, os soldados, os tiros, o sangue.” Embora com medo de dormir novamente, não resistiu ao sono.
O desembarque em Tokio foi alucinante. Grandiosidade, luzes, movimento, barulho e sons. Homens e mulheres com roupas ocidentais mesclando-se aos jovens travestidos de personagens de mangá. Conseguiu, no meio do mar de tipos, enxergar duas mulheres vestindo quimono branco. “Gueixas?”
Não fosse o funcionário do hotel busca-lo e a reunião logo cedo, teria ficado no aeroporto Haneda, de tão maravilhoso. Percorrer os 5 andares, observar os gigantescos aviões chegando e partindo, de todos os cantos do mundo.
Instalado, escancarou a janela do quarto que dava para a Avenida Gaien Higashi Dori, uma via-viva por conta do ininterrupto movimento, de pessoas e de luzes. Dormiu ali mesmo, na poltrona estilo vintage, com estampa floral.
“Orraiô!”, o despertador o cumprimentou, tentando avisá-lo do amanhecer. No terceiro acionamento, soou um “ORRAIÔ!” que o fez sentar-se num salto e desligar o aparelho. Levaria um tempo para se acostumar com o fuso horário.
Um motorista o esperava para leva-lo à cidade de Kawasaki, onde uma reunião com prováveis compradores de matéria-prima selaria seu futuro na empresa exportadora.
Apenas o volumoso trânsito lembrou-lhe a cidade de São Paulo. A paisagem era bem outra. Os parques, os monumentos pelo caminho, o rio limpo sugeriam paz no meio do caos.
Na volta para Tokio, resolveu ir a uma cerimônia do chá proposta pelo hotel. Foram-lhe antecipados os procedimentos do cerimonial, como como se vestir e ser comportar. Fez uma pesquisa na internet também.
O local era uma das casas de chá existentes no bairro Asakusa, parte antiga da metrópole, destoante do frisson do vizinho Akiba.
Os participantes da cerimônia, em silêncio respeitoso, acompanharam a entrada da gueixa, vestida com quimono negro, cabelos presos por palitos artesanalmente esculpidos em marfim, rosto maquiado e o leque carmim decorando a mesa. No momento que se ajoelhou no tatame, entrou um samurai com toda a imponência que a yoroi lhe confere. Sentou-se frente a gueixa.
Aquela cena lhe pareceu familiar, embora nunca tivesse participado de uma cerimônia dessa. Ficou vidrado na elegância dos gestos das duas personagens, na introspecção, como se não houvesse ninguém no recinto. Não conseguiu conter as lágrimas.
De volta ao hotel, não teve o mesmo ânimo para observar pela janela. O cansaço o abateu. Com muito esforço tomou banho, e jogou-se na cama. Repassou a cerimônia antes de cair no sono profundo.
Num vale, ao longe avistou semblantes. Aproximando-se, viu que eram as figuras de um samurai, sentado com os pés cruzados e as mãos sobre os joelhos, e um pintor ocidental, gravando-lhe em uma tela vermelha. Mais ao fundo, observou uma flâmula com letra japonesa. Era o mesmo samurai do sonho anterior. O guerreiro fez sinal para que ele se aproximasse e tirou a máscara.
Acordou atordoado. Transpirava. Levantou-se, foi até a janela. Mais para respirar que para observar; até porque as luzes do Akiba ofuscavam-lhe a visão. “O que significará isso?”
Pesquisou se existia algum museu específico de samurais. Encontrou o Museu da Espada Japonesa. Foi visita-lo num misto de curioso e apreensivo. Ficou fascinado com o acervo repleto de armas, armaduras, capacetes, ferramentas, estátuas, desenhos, instalações, documentos.
No final de um corredor havia uma indicação “Sala da Batalha Final”. Um arrepio ao entrar. Abaixo de uma grande tela estava exposta a armadura completa do último samurai, além de outros de seus pertences e documentos. Num canto, havia uma relação de alguns outros ronins mortos naquele dia.
Voltando a atenção para a tela, lembrou dos seus sonhos. Era o mesmo local. Estava indicado “Monte Shiroyama, Kagoshima – Cenário da última batalha dos samurais”. Por algum motivo, aquilo mexia com ele. Um certo sentimento de indignidade e ira, talvez gerado por conta do fascínio pelos samurais. Intuiu que precisava ir àquele local.
Logo pela manhã nem esperou pelo “orraiô” do relógio. Foi ao aeroporto e pegou o primeiro voo para Kagoshima. Quanto mais pensava no que estava fazendo mais lhe parecia absurdo.
Desceu do bonde deslumbrado pela paisagem. Mas, apesar da beleza do lugar, não era isso que buscava. Veio guiado por uma força inexplicável. Caminhou pelo parque como se soubesse exatamente onde ia.
No sopé do monte viu um rasgo de água. Teve um dejavu. Mais que lembrar dos sonhos, podia ver-se, sentir-se ali. Um sentimento de bravura, de dor. Mas, como, se jamais esteve ali?
Quis ficar mais um tempo no Japão, mas precisava voltar ao trabalho. Levava consigo, apesar das boas novas, uma sensação de perda, de desencontro, de vazio.
Passado um tempo, ainda os acontecimentos no Japão o intrigavam. Foi tudo tão absurdo e tão verdadeiro; tão próximo e tão alheio.
Aproveitou um dia de folga para ir ao museu japonês, no bairro da Liberdade, em busca de descobrir algo que ajudasse a desvendar todo esse mistério.
Descobriu que chegaram ao Brasil em 1902, a bordo do navio Kasato Maru, vindos de Osaka. Do porto de Santos, eram transportados para a Hospedaria dos Imigrantes, no bairro da Mooca, e de lá para fazendas do interior paulista, especialmente nas plantações de café, inclusive para a cidade de Tupã. Muitas famílias japonesas se refugiaram nesse bairro fugidas das fazendas por discordarem do ambiente de trabalho.
A exposição de fotos do navio de desembarque em Santos, dos clãs na Hospedaria dos Imigrantes e nas fazendas de café, não lhe davam a mesma sensação que experimentou no Japão. Se não fosse o prazer pelo conhecimento de História, teria ficado totalmente frustrado.
“Tupã é minha cidade natal.” Olhou o nada, como a imaginar a relação entre a realidade e os seus sonhos. “O que me trouxe até aqui?”
Considerando a idade e o tempo que viveu naquela região, resolveu perguntar à sua mãe se ela conheceu famílias japonesas e se houve casamentos entre seus familiares e aquelas. Disse que conheceu algumas que moravam na cidade, não nas fazendas, mas foi só um contato cordial, e que desconhecia união entre as famílias.
A curiosidade o consumia. Aproveitaria as férias para ir até aquela cidade. Escolheu o mês de setembro para coincidir com a Nippon Fest.
Após instalar-se numa pousada na Avenida Tamoios, foi até a prefeitura a procura de informações. Não sabia ao certo o que procurava, mas certamente não estava ali, naqueles documentos, fotos e recortes de jornais.
Tentou o museu. Lá estava o material que procurava. Amostras de vestuário e ferramentas. Mas o que mais lhe chamou a atenção foi o setor de armas samurais. Conjuntos de kataná, wakisashi e tanto, yumi, também uma armadura, com hoate e kabuto indicando o clã samurai, doada por uma rica família nissei. Não resistiu. Aproveitou a distração da segurança e tocou na armadura. Foi como se ouvisse um trovão e fosse acertado por um relâmpago. Desmaiou.
Acordou numa cama de hospital. Buscou rememorar a visita ao museu. Conseguiu lembrar até o momento em que estendeu a mão para tocar a armadura. Sentia ainda a ponta dos dedos dormentes. Ainda atordoado, adormeceu.
Estava no curso d’água do monte quando um dragão parou a sua frente. A criatura olha seu reflexo na água por alguns instantes, como se pensando. Ricardo não estava com medo, mas se assustou quando o dragão lhe dirigiu a palavra. “Não está entendendo nada, não é?” - em sorriso afetuoso. “Em outras épocas era mais fácil contatar um escolhido. As coisas eram reais, não só ‘lendárias’. Os homens viviam de coragem e força. Agora, são só dados de arquivo, fábulas.” Abaixou-se e olhou Ricardo nos olhos. “Você acredita que estamos mesmo aqui?”
As enfermeiras assustaram-se com o paciente gesticulando e resmungando palavras ininteligíveis. “Senhor? Acalme-se.” “Oh, meu deus, porque me acordaram?!” “O senhor não parecia bem. Falava sozinho.” “E o que eu dizia?” “Palavras sem nexo...”
Recebida alta médica, foi até a feira para espairecer. Via representações de dragões por toda parte: flâmulas, camisetas, fantasias. Uma barraca chamou-lhe a atenção. Havia um ancião japonês que desenhava letras com rapidez e leveza. Parou o que fazia e olhou-lhe fixamente. “Tire um destes cartões” – ordenou. Tirou e olhou. Era a letra da flâmula. Mostrou ao ancião que, antes mesmo de vê-la, fez uma expressão de frustração. “Você é a reencarnação de um samurai. É só. Se fosse o esperado retorno do Dragão teria tirado esta letra.” Mostrou a letra idêntica a que desenhava.
Ricardo ficou petrificado. Passado o susto, questionou o sábio. “Como assim sou a reencarnação de um samurai? Não tenho nenhuma descendência japonesa. Não tenho qualquer habilidade de luta; aliás, detesto violência.” “Você chegou até aqui, não foi? Seguiu as visões, esteve com o seu dragão interno. A essência está na raiz, não no corpo físico. É preciso rememorar”. “Mas sou muito velho para começar a treinar...” “Olhe para mim. Sou um velho. No entanto, posso cortá-lo em pedaços sem que perceba” – mostrou a katana sob o quimono. “Tudo bem. Treinando para ser um samurai, o que farei com isso?” “O despertar chegará. Prepare-se.”
Embora lhe parecesse ridículo, aceitou ser discípulo desse mestre samurai. Completado o treinamento com a bokken, e, enfim, consciente do seu destino, mandou tatuar por toda a extensão do corpo a figura do seu dragão interior.