Propósito
O garoto observava o farol atenciosamente, como se esperasse que alguma coisa fosse acontecer, pobre garoto e sua singular obsessão pelo farol, era estranho, ele já tivera passado o olho por outros faróis durante sua vida, porém com aquele era diferente, ele era especial.
Ele estava lá, parado, no topo do grande monte coberto por arvores coníferas, observando o mar e a vida na pequena cidade, que segredos ele escondia? Imaginava o pobre garoto covarde que o observava da janela de sua casa. Ninguém o entendia, ninguém era capaz de compreender aquele seu peculiar gosto. Seu caderno, sua mesa na escola, as folhas brancas que seu pai iria usar para datilografar mais tarde, tudo era coberto por simples faróis rabiscados. Apesar de seu encanto pelo farol, o pobre garoto nunca foi capaz de ir de uma vez ao tal lugar, as vezes ele chegava perto da entrada da subida do monte, mas nada além disso, ele até que tentava, mas a tensão e o nervosismo o consumia, fazendo suas pernas tremilicarem, nem ele entendia ao certo o porquê, e no final, ele sempre voltava para casa. Mas não é por que ele não ia ao farol que significava que sua adoração por ele diminuía, pelo contrário, ao longo de sua vida ela apenas aumentou, com o tempo, rabiscos viraram desenhos, desenhos simples se profissionalizaram e viraram pinturas em acrílico sobre o canvas e nanquim, quadros emoldurados cobriam a visão distorcida e desequilibrada dos cômodos de sua casa, ao ponto de com o tempo, afastar as pessoas de sua vida.
Sozinho, sem amigos ou família, ele não se abalava, seu amor pelo farol estava lá, quase perdendo a abstração e dando asas a materialidade. Um dia então, o pobre garoto agora já com densos e escuros pelos sobre o rosto olhou em sua volta, e pela primeira vez ele percebeu a realidade de seu meio, estava decidido a concretizar o seu sonho e encarar cara a cara o imenso colosso que observava o mar, nada o impedia.
Engoliu a ansiedade e o medo, e nessa ordem calçou suas melhores botas, vestiu uma jaqueta e uma calça velha e partiu em direção ao farol. Correu como se não houvesse amanhã, como se chegar ao topo do monte lhe mostrasse o real significado de sua vida, sem mesmo se importar com a porta de casa que ele tivera deixado aberto, lá estava ele seguindo, confiante ao seu destino, passou por ruas, avenidas e becos, sobre os prédios ele via a lampada do farol brilhando sobre a leve chuva. Faltava pouco, quando de repente, aos seus ouvidos chegaram sons de cornetas apocalípticas, notas agudas perfuravam seus ouvidos e rápido como o balançar das asas de um beija-flor, tudo se escureceu em um absoluto breu.
Dor, sangue e lágrimas estavam sobre o chão, ao lado do corpo retorcido e sem movimentos do pobre garoto, olhos o cercavam, murmuros e pensamentos curiosos o julgavam, lá, no meio de uma movimentada estrada onde uma camionete velha o acabara de acertar, quase ceifando-lhe a vida. O pobre garoto jamais andou novamente.
Os anos passaram e suas feridas cicatrizaram, ao menos as que eram cicatrizáveis, a depressão já havia consumido por completo seu corpo, suas pernas inutilizáveis já não sustentavam mais seu corpo, nem para ao menos observar o farol da janela de sua casa ele era capaz, seu sonho estava estilhaçado, não sustentava a pena de um pássaro, uma parte dele morreu no dia daquele acidente ... Ou assim ele pensava.
O tempo já mostrava seus sinais no pobre garoto, agora já castigado por aquela estranha tinta branca e cinza que cobria o negro de seus cabelos, junto com aquelas estranhas rachaduras que marcavam sua flácida pele, ele estava velho. Anos antes quando tivera se acidentado, jogou tudo relacionado ao farol fora, já não restava nada, trancou suas lembranças em um cofre em sua cabeça, e os anos passaram e passaram, uma arvore cobria a janela, seus filhos já tinham seus próprios filhos e as rodas de sua cadeira emperravam de vez em quando, tudo desabava em um singular clima de tristeza.
Foi então que um dia ao mexer em umas de suas caixas velhas ele encontrou, encontrou aquilo que mudaria a sua vida, aquele presente divino, amarelado e amassado, era um velho desenho, simples rabiscos que formavam uma figura cilíndrica, o farol que ele tanto amava.
Seu peito doeu, seus olhos se encheram de lágrimas, suas mãos tremiam, ele havia achado, redescoberto sua rezão de viver, seu velho sonho de infância, que agora ao pé da casa dos 80 anos o faziam sorrir e sorrir novamente como aquele jovem e franzino garoto sonhador.
Mais uma vez ele calçou como pôde suas melhores botas, pegou um agasalho, abriu a porta de casa e naquele entardecer alaranjado ele decidiu completar sua vida, realizar de uma vez por todas aquele sonho. E então ele partiu, usando todas as suas forças para empurrar aquelas rodas velhas de sua cadeira, forçava como um impávido colosso. O suor já decia-lhe o rosto enquanto ele atravessava todas aquelas avenidas e ruas, todos o olhavam assustados, cruzava com as pessoas como se asas angelicais o empurrassem, nada o parava, já não era mais possível.
Quando uma ideia é misturada a força de vontade, cria-se uma formula jamais vista, e lá seguiu, seguiu e seguiu, e pouco a pouco a distante figura do farol de aproximava, só faltavam alguns metros para a entrada do monte, a palma de suas mãos já estavam em carne viva, suas unhas ficavam pelo caminho, veias saltavam-lhe o pescoço, sua cor era de um rubro preocupante, mas nada importava, sua convicção era mais forte.
Porém, uma leve sensação aos poucos surgia, era estranha, seca como uma fruta velha, surgia aos poucos vindo do fundo do seu peito como uma navalha retorcida. Sua visão embaçou, o ritmo diminuiu e justo na porteira enferrujada que guardava aquele monte, ele parou. Cansado, machucado, com dor pelo corpo todo, ele olhou por entre as árvores o branco descascado do farol, abaixou a cabeça e olhou para suas mãos em carne viva, sentiu a ardência do suor que caía em suas feridas e naquele momento ele lembrou de sua infância, dos sábados em que ele acordava cedo, corria para cozinha, fazia um chocolate quente, pegava biscoitos, corria para a janela do seu quarto e observava o farol ao amanhecer frio sobre a neblina. Ele lembrou dos desenhos que ele fazia na mesa da escola e de todo o tempo que ele dedicou a pensar naquele lugar por aparentemente razão alguma.
Sua vida era aquela, não havia nada a ser mudado, ele olhou para os céus, sua visão cada vez mais embaçada ficava, a dor lacerava seu peito, mas naquele momento, ele pensou, pensou que pela última vez ele daria tudo de si.
Naquela hora seu corpo se transformou, ele voltou a ser aquele jovem garoto, e com toda sua força ele agarrou as rodas de sua cadeira e desta vez como um dragão ele alçou voo em direção ao topo da lendária montanha, suor, sangue, dor, gritos, compunham a atmosfera, ele voava com tudo, com toda sua vontade, até que suas asas de quebraram e ele caiu de bruços no chão, como um saco de batatas, faltava pouco, talvez Dez ou quinze metros e tudo que ele queria agora era tocar no farol, e assim ele fez, se arrastando, rasgando sua carne sobre o chão de pedra aos poucos ele chegava e aos poucos sua força se esvaía, mas ele foi, era como a última gota de água de uma garrafa no meio do deserto ardente, faltavam cinco metros, seu corpo já estava sobre a sombra do farol, não falta mais nada.
Já vazio, sem forças, cego de dor e cansado, pouco antes de tocar o farol, olhou para a cidade e para o mar, e os dois olharam de volta para ele, como se o universo reconhecesse seu esforço e naquele momento pela primeira vez em sua vida ele tinha ideia do seu futuro, estava calmo. De bruços no chão, seu braço apoiado com o cotovelo no chão, caiu sem forças, seu corpo parou de tremer, seus olhos fecharam-se uma última vez e a dor se foi, havia terminado, e lá ao lado do farol ele se foi, se transformou em tudo aquilo que ele sempre admirou e até os últimos dias dos últimos dias ele sobre o topo do monte observou o mundo, as pessoas e suas vidas, a natureza e os animais, e a partir daquele dia, passou a haver dois faróis sobre o topo daquele monte e lá ele permaneceu, pra sempre, feliz e em paz.
Ninguém jamais esqueceu dele.