O Saragaço do Saci-Saçura, primo do Saci-Pererê!
Sentada sobre um grosso tronco de goiabeira, onde as mulheres costumavam cortar lenha... Num final de tarde de outono, lá na década de cinquenta, minha mãe viu entrar no porão da nossa casa, uma jovem negra. Parecia uma menina se não estivesse carregando um bebê no ventre. Nem mesmo o vento consegue esquecer o que ouviu naquele final de tarde. Já beirando as 20 horas, sabendo do acontecido, preocupada, tia Dada, uma moradora do outro lado da rua, achando insana aquela história da aparição da tal jovem negra, correu até o porão. Para sua surpresa, lá estava a jovem de feições doces, deitava sobre uma cama de ramas de vassoura. Ela se contorcia de pura agonia. Eram as dores de parto.
De repente saiu entre suas pernas, um gracioso bebê de olhos grandes e amendoados. Mas eram de dar medo: eram da cor do fogo. Ao ver a criança, Tia Dada saiu correndo. Seus olhos estavam esbugalhados. Ela tremia que nem vara verde. Sua respiração parecia ofegante ao conhecer o infante. Tia Dada, assustada, foi à casa da Maria Rael. As duas conversaram em voz baixa. Mal dava para ouvir uma só sílaba.
Quem presenciou tudo isso, tinha um costume muito feio. Gostava de entrar embaixo do porão das casas, para ouvir a conversa dos mais velhos. Foi nessa noite que a curiosidade virou o maior saragaço... Ao acordar com a batição da porta da cozinha da vizinha. Num entra e sai atrás do outro, a menina não resistiu. Pegou a cachorra Baíta e lá se foram as duas, rumo ao porão da casa. Bem embaixo das donas da conversa. As duas entraram pelo lado que melhor dava de ouvir.
A Baíta, inquieta, estava a ganir baixinho. Ela fuçava na direção da cozinha. Só não foi até lá porque estava na corrente, segura pela menina. A cachorra estava agitada. De tanto querer sair da corrente, a cachorra quase arrancou o braço que a prendia. O braço de Catharina.
A Baíta não deixa nem uma mosca ouvir direito. Mas Catharina conseguiu escutar. Havia uma voz que dizia:
- Eu vi! Vi sim... E vem lá debaixo, bem no canto da cozinha. Você estava certa. Não era aparição. A jovem negra tá lá com a criança no colo. Ela pariu o filho sem ajuda de ninguém. Não sei como. Ao seu lado tem uma bacia com água de banho. O menininho parece limpinho. Também tá vestido. Todo enrolado numa coberta vermelha. Até o gorro é vermelho. Os olhos parecem duas bolinhas de fogo... Credo em Cruz...
Foi quando a menina olhou e não viu mais a Baíta. Não se sabe como, mas ela havia fugido. Catharina correu até o quintal e começou a chamar:
- Baíta, Baíta!!! Cadê você?
A cachorra saiu correndo debaixo do porão da cozinha. A menina, curiosa que só ela, foi até lá. Ficou de boca aberta. Olhou no canto do porão e viu uma jovem. Ela estava a tremer de medo. No seu colo estava uma coberta vermelha. Só a coberta. Ela parecia não ver nada. Estava assustada, de olhar perdido.
Lá fora, a Baíta silenciou de repente. Foi um silêncio estranho. De repente ouviu-se um choro que saia do bambuzal. Catharina correu na direção do choro. Ao chegar, não acreditou. Viu um menininho deitado no colo da Baíta que o lambia feito mãe. Ele mamava na Baíta. Parecia seu filhote.
Então a menina sussurrou:
- Vou chamar a Tia Dada... - e voltou pra dentro de casa. No quarto de sua mãe não havia ninguém. Foi até a cozinha, também não havia ninguém. Com as mãos cobrindo as orelhas, chamou:
- Manhêêêê... – e ninguém respondeu. Ela estava sozinha a imaginar: “... e agora que todos sumiram o que vai acontecer? Até minha mãe sumiu... Será? Ui! Nem quero pensar.
De repente, lá do bambuzal, ouviu-se um zunzum de mulher. A menina olhou pela janela da cozinha. Lá estava a jovem negra sentada no tronco, entre sua mãe e a Tia Dada. Foi tão rápido, mas ela viu a jovem correr do meio das duas. Ela parecia uma cabrita assustada. Correu aos pulos e sumiu pela mata.
Em poucos minutos, a Baíta voltou bem calma. Em silêncio. Aquele silêncio que tomou conta de tudo. Pela segunda vez, enquanto os adultos estavam mergulhados no dito silêncio, Catharina correu pelas pontas dos pés, até o bambuzal. Chegou ao local onde a Baíta estava com o menininho, mas, além de um discreto gemido do bambuzal, nada mais encontrou. A Baíta estava ao seu lado, mas a crianças sumiu. Era noite de brisa estranha. Depois veio o Vento Sul.
Passado alguns dias, Catharina foi à casa da Tia Dada para visitar uma sobrinha dela. Era uma jovem negra, que havia ganhado um menino de uma perna só. As mulheres adultas, cochichavam palavras que acordavam lembranças daquela noite cheia de silêncios, choro de criança, a Baíta lá no meio do bambuzal... Parecendo mil fios de memórias a tecer a mesma história.
O relógio na parede parecia ter acelerado o tempo. Muito, muito, muito, muito tempo...
Catharina havia crescido. Veio do norte do Brasil um rapazote bem pretinho. Ele tinha uma perna só e se chamava Saci Pererê. A menina recordou:
- É primo do Saci-Saçura! O Pererê.
E outros meninos foram aparecendo. Eram todos primos. Cada um mais estranho que o outro. Quando estavam juntos, era o maior saragaço.
Certa vez, num desses encontros entre primos, aconteceu, no quintal da Tia Dada, uma estranha exibição. Era de dar medo, MEDINHO, MEDÃO...
O Saci-Saçura pegou um frango do galinheiro de minha mãe. Segurou o animal pelos braços e sacudiu. Sacudiu, sacudiu, sacudiu... Sacudiu mais um pouco. Parecia um funil. Não matou o coitado. Porém vendo que o animal era teimoso, pulão, um torrão... pior que macaco. Pegou o pobre pelo antebraço, mas de nada adiantou. O frango todo esfrangalhado, mais teimoso que o primo Pererê, não teve outro remédio. Foi quando outra ideia chegou:
- Já sei. O jeito é te prender bem forte as pernas. Agora vamos ver quem é mais forte seu frangote teimoso, prazenteiro, carne de pescoço. Se te peço uma só peninha emprestada, não me das nem uma zinha... Agora vou é te segurar o pescoço e...
Pobre frango... O Saci-Saçura começou a arrancar todas as penas do pescoço do animal desesperado. Para quê? Queria fazer um travesseiro para seu regalo.
O que aconteceu com o frango? Entre penas e gritos, saiu um frango de pescoço pelado. Mas, desse tempo por diante, o frango ficou elegante, viu? Sendo também um dos galos mais requisitados. Aquele que virou poeta de telhado. Galo de carapuça grande e pescoço pelado. Dizem que foi do galinheiro da Tia Dada, graças ao Saci-Saçura que hoje existe o galo polaco. Galo de linhagem nobre. Aquele que aprendeu que nada acontece por acaso. E o Saci-Saçura e seu primo Pererê, hoje, são andarilhos da mata, sempre no maior saragaço. Eles sempre visitam a casa da Tia Dada.
E a mãe do Saci-Saçura? Essa nunca ninguém viu. Dizem que ela colocou sebo nas canelas e saiu para outras bandas do Brasil, até a cidade de Saragoça. Mas essa já é outra história.
(Releitura da imaginação)