FÁBULA RECONTADA: "UM NARIZ PARA A TIRANIA"

"Um sábio nunca diz tudo o que pensa,

mas pensa muito sobre o que irá dizer."

(Aristóteles)

Simplício Salgado, num certo dia de insensatez, tomou a decisão de ser perfeitamente sábio, perfeitamente integro e outras perfeições que só é possível perseguir.

Considerou do alto da importância sumo elevada que tinha de si, que o mundo precisava do seu exemplo.

Jurou, de joelhos, perante a foto da sua falecida mãe, figura mais sagrada da sua existência, que tomaria todas as providências e precauções para atingir esse objetivo.

De imediato, para que não se envolvesse em negócios, (ocasiões onde surgem as oportunidades ilícitas, apelidadas de espertezas), vendeu tudo o que possuía de valor e transformou em dinheiro.

Esse dinheiro ele levou a um banqueiro de sólida reputação junto ao governo; assim estava certo de nunca ter prejuízo.

Depois comprou uma boneca inflável, de plástico, num site de produtos eróticos. Ela seria doravante sua amante secreta; nela aliviaria seus instintos primitivos - coisa que, nisso era convicto, resulta em problema.

E finalmente jurou que seria sempre sóbrio, não beberia nada com álcool.

Completada a missão de assim se resguardar, Simplício saiu a passear.

Sentou-se num banco de jardim, à sombra de uma Quaresmeira em flor, e ficou a apreciar a beleza, saborear a paz e sentir o perfume da tranquilidade.

Contudo, inesperadamente, senta-se ao seu lado uma linda jovem que chorava copiosamente.

Indagando qual a razão daquela infelicidade, a jovem aos prantos, e com muita dificuldade, contou que era abusada pelo padastro, com quem morava depois que sua mãe morreu.

O padastro era cruel e a espancava com frequência.

Confessou que se tivesse dinheiro suficiente para comprar uma passagem de ônibus para o nordeste, onde moravam seus tios, fugiria sem pestanejar.

Simplício considerou que podia fazer-lhe este favor.

A moça o abraçou agradecida.

Chamou-o para ir até o pequeno quarto onde morava para arrumar as malas, depois iriam até a rodoviária comprar a passagem.

O padastro estava fora - no trabalho; disse ao acaso.

Simplício não viu mal algum na proposta.

Já no quarto da moça ele ajudou-a a colocar na mala os seus poucos pertences.

Depois a moça, num ato de surpresa e desinibição, tirou a roupa na presença de Simplício, dizendo que tomaria um banho rápido e mudaria por outras mudas limpas.

Foi neste instante comprometedor que um senhor de grandes proporções entrou no quarto.

Furioso agarrou Simplício pelo colarinho:

____ Que faz aqui com minha afilhada nua? Por acaso não sabe que ela é menor de idade? Seu pedófilo safado, vou lhe dar uma surra e entregar-lhe à polícia.

Encrenca era tudo o que Simplício jurara evitar.

Acabou aceitando a sugestão do padastro de pagar uma indenização.

Ele o acompanharia até o banco, onde sacaria a quantia elevada que o brutamontes exigia.

Ele nem pode despedir-se da pobre moça, que trancou-se no banheiro.

E assim foi feito e Simplício ficou um pouco mais pobre.

De volta para casa, nervoso, procurou acalmar-se sentando-se no sofá, a beber água fresca e a ver televisão.

Mas - oh! dia infeliz !

Após o alerta pavoroso do "noticia urgente", ouviu o repórter noticiar que o banco, no qual Simplício depositara toda a sua fortuna, decretou falência e os diretores haviam fugido, sabe Deus prá onde!

Simplício estava pobre.

Na busca de forças para suportar o destino, Simplício bebeu bem uma garrafa inteira de uísque.

Bêbado foi até o banco central formular sua reclamação - afinal depositara o dinheiro naquele banco exatamente pelo fato dele ter boas relações com o governo.

Mas já na porta de algum gabinete, foi aprisionado e levado à presença de um aspone qualquer que lhe fez severa advertência:

_____ Como ousa reclamar aqui. Por acaso não sabe que fiscalizamos com rigor? Sugere que fomos relapsos? Está nos desacatando? Sabe que é crime desafiar a autoridade do Estado? Do nosso Presidente legitimamente eleito? (não acrescentou que esse tal presidente dera um golpe, fizera alianças espúrias, e exercia o mandado ilegalmente).

Simplício, que só desejara a paz, foi severamente julgado pela sua insensatez e lançado numa masmorra.

A pena era de trinta anos; mas o juiz (que tudo podia), deu-lhe a alternativa de se livrar da prisão se pagasse uma severa multa de cinco mil dólares.

Como Simplício pagaria a multa?

Se haviam lhe roubado tudo!

Na prisão, bebendo uma caneca d'água e comendo um pão adormecido, despertou finalmente para a besteira que fizera.

Ser perfeitamente sábio, perfeitamente honesto, nesse mundo de pecado, fora de fato uma tremenda insensatez.

Na manhã seguinte à primeira noite na prisão Simplício chamou o carcereiro.

Pediu a ele que o soltasse por doze horas.

Nesse espaço de tempo ele arrumaria dinheiro suficiente para pagar a multa de cinco mil dólares.

E faria mais: daria quinhentos mil dólares ao carcereiro.

O carcereiro coçou as mãos, num comichão, e aceitou.

Simplício imediatamente arrependeu-se de ter oferecido tanto ao carcereiro - ele aceitaria cem dólares!

O carcereiro fez Simplício prometer que voltaria ao final do dia, dentro do prazo de doze horas - senão divulgaria a fuga.

Simplício jurou - até porque estava certo de que no final do dia seria um homem livre.

Uma vez na rua Simplício caminhou apressado.

Foi até a casa de um certo multimilionário, figura nefasta, que conhecia dos tempos em que fazia os trambiques que jurara não repetir.

A fortuna do multimilionário era incalculável, porque estava dispersa em vários negócios, todos tendo o Estado como cliente, essa pobre viúva rica que está sempre a procura de quem lhe cuide.

Sentou-se comportado na sala de espera, após pedir para falar rapidamente com o afortunado.

Na presença do supremo membro da ordem financeira e outros balacobacos, foi alertado por este para que fosse breve - pois seu tempo era curto.

_____ Senhor - começou Simplício - Senhor! Estou aqui na sua presença em missão secreta.

Sabe Vossa Senhoria que há muita cobrança popular por causa dos descalabros do novo governo.

Ele consultou-me, se poderia ajudá-lo.

Eu não podia negar - ele é hoje um homem muito poderoso, colocado no cargo por pessoas muito mais poderosas do que ele.

Ele quer saber como se faz para "farejar" encrenca.

"Farejar" o problema para evitá-lo.

Eu respondi-lhe: primeiro, para "farejar" de que lado vem o problema é preciso de um "nariz farejador".

Um "nariz farejador" - fui bem claro na solução.

_____ E onde eu encontro esse nariz? Perguntou o tirano à mim, Simplício Salgado.

_____ Eu sei onde encontrar esse nariz. Mas reservo-me ao direito de não revelar.

Mas no entanto, farei de tudo para trazer-lhe esse nariz.

____ Então estou aqui em missão especial do poderoso tirano e dos seus poderosos dominadores.

Vim buscar o nariz.

Espantou-se - e muito - o multimilionário:

____ Mas que nariz é este?

____ Ora, ora! O nariz do teu pai.

____ O nariz do meu pai? Surpreendeu-se mais ainda o multimultimilionário.

____ Sim. Foi o seu pai quem construiu toda a tua fortuna. Teu pai ainda o aconselha. Teu pai conhece todas as falcatruas do mundo. É capaz de farejar as "encrencas" de longe. O NARIZ DO TEU PAI É O MELHOR FAREJADOR DE ENCRENCA DO MUNDO.

____ É - concordou o multi-multi-multimilionário. Tens razão. Mas eu não posso mandar arrancar o nariz do meu pai.

Não é justo que ele fique sem o seu nariz.

Já está acostumado com ele.

Além do que - O MAIS IMPORTANTE - eu não posso ficar sem o nariz do meu pai. Ele é a garantia da minha impunidade!

____ Então estou numa enrascada - respondeu Simplício.

Eu não disse aos tiranos onde havia esse nariz.

Mas vou ter que dizer - senão serei morto.

E os tiranos mandarão seus capitães-do-mato cortar a força o nariz do seu pai.

Será uma terrível violência.

____ Mas então - disse o multimilionário - eu vou ter que matá-lo antes que saia desta sala.

____ Isso não resolveria nada - respondeu Simplício - eu deixei com amigos que você não conhece - carta que será enviada ao Tirano no caso de minha morte comunicando onde encontrar o tão necessário nariz.

Matar-me irá penalizá-lo duplamente: seras condenado pela minha morte; e seu pai ficará sem o nariz.

Como bons negociadores, combinaram que o multimulti-multimilionário adiantaria seis milhões de dólares.

Cinco mil dólares seriam direcionados para pagar a mora - da multa judiciária.

Cinquenta mil dólares cairiam nas mãos do carcereiro. Que se daria por feliz. (Que promessa besta essa de pagar quinhentos mil doláres).

Talvez daria menos.

O resto serviria para ele sair luxuosamente do pais.

Mais cinquenta mil dólares seriam depositados no paraíso fiscal do Panamá.

Simplício viveria bem com essa reserva em dinheiro.

E nunca ninguém ouviu falar que banco de lavagem de dinheiro tenha algum dia quebrado.

Eles estão na ativa e dando certo desde os tempos dos piratas da rainha da Inglaterra.

____ E o último pedido - disse Simplício ao milio-milio-multi-milionário - é que não revele nunca esse nosso negócio a ninguém - muito menos ao Tirano.

Senão resultaria numa enormidade de problemas, sendo o principal, o corte do nariz do seu pai.

E assim foi feito.

Foi bom para todos.

Exceto pelo fato de que sempre que o pai do milionário pegava uma gripe e se punha a espirrar, ouvia do filho indignado:

____ Cuidado com este nariz; custou-me cinquenta e seis mil dólares.

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Obrigado pela leitura - fiquem com Deus.

Araçatuba, 07-02-2015+2

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EXPLICAÇÕES: Essa fábula baseia-se em parte no conto "A sabedoria humana", de Voltaire.

Outra parte baseia-se nas histórias de "Pedro Malazartes", personagem da minha infância, cujo causos a gente contava e ouvia contar nas noites frescas de estrelas.

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