962-O SÁBIO, O BURRO E O GALO - Histórias da Vovó Bia

— Vovó, conta uma história.

Os netos de Vovó Bia não se preocupavam em repetir as mesmas palavras quando queriam ouvir uma história, pois sabia que eram sempre atendidos. Geralmente já estavam todos acomodados: a meiga e afável avozinha sentada em sua confortável cadeira de braços e os três netos ao seu redor, de pernas cruzadas, sentados sobre o tapete feito pelos índios Maracachás.

Vovó Bia não deixava que os dois netos e a netinha repetissem o pedido. Desenrolava um pouco de fio do novelo de linha para dar muitos pontos na confecção de maus uma toalha de tricô e iniciava, sem preâmbulos, a contação de uma história para eles.

— Hoje vou contar uma história que tem um ensinamento moral. Prestem atenção.

E contou:

— Havia há muito tempo um sábio de vivia a caminhar em busca de conhecimento e sabedoria. Não era solitário em sua caminhada, pois o acompanhavam um burro velho e um galo cujo cantar desafinado o acordava todas as manhãs com seu cocoricó fraco, pois também já tinha muito tempo de vida. O sábio nem se lembrava mais quando o burro e o galo começaram a segui-lo. Repartia com os dois animais a comida quando encontrava o que comer, e dormiam juntos, quer estivessem nas matas, nos campos ou nas vilas por onde passavam.

Fascinados, os meninos se sentiram elevados, juntamente com a vovó, e foram transportados pelo tapete para uma região igual á que vovó narrava. Já se tornara para eles normal a”viagem” que faziam ao som da narrativa de Vovó Bia.

Viram o velho, ao burro e o galo andando pelo caminho difícil entre matos e cheio de buracos e pedras.

Andava pelas terras do oriente e em certa ocasião, adentrou-se por uma região onde bandos de ladrões e cruéis aventureiros que atormentavam os habitantes dos povoados remotos. Ele não sabia que a região era perigosa, mesmo para um velho seguido por um burro e por um galo, pois nunca se sabe o que vai na cabeça dos bandidos assaltantes.

Chegou até uma vila maior e como já era o entardecer, procurou uma pousada para pernoitar com seus companheiros de viagem. Não encontrou um lugar, fosse pousada, fosse um abrigo em casa de gente generosa. Havia muita agitação na aldeia e as pessoas pareciam medrosas e desconfiadas.

O ancião, além de não encontrar um abrigo para si, o burro e o galo, sentiu a hostilidade geral e não gostou. Tomou o caminho de uma floresta que se situava a pouca distância da vila e entrando por entre as arvores, escolheu um lugar para passar a noite. Dependurou sua lanterna de azeite num galho e estendeu sua manta; sentou-se encostado em um tronco, orou e depois se deitou para dormir. Ao seu lado, o burro permaneceu de pé (pois cavalos, burros e jumentos dormem de pé, como vocês já viram aqui na fazenda) e o galo procurou um galho para empoleirar-se.

Logo todos dormiam tranquilamente sob a luz da lanterna que iluminava o local, estendo sua luz num círculo não muito grande.

Silenciosos, os meninos acompanhavam o desenrolar da história como um espetáculo de cinema em muitas dimensões.

Viram quando, sorrateiramente, dois lobos chegaram ao acampamento e num ataque audaz, silencioso e mortal, abateram o burro, arrastando-o para o interior da floresta. O velho acordou e percebendo o que acontecia, pensou:

Nada acontece por acaso. O burro já estava bem velhinho, e os lobos deviam estar esfomeados.

E voltou a dormir.

Horas depois, ainda noite fechada, uma raposa aproximou-se e de um salto, pegou o galo num soltou um pio ao ser morto. O sábio acordou em tempo de ver a raposa levando o galo para dentro da floresta, e pensou:

Pobre galo! Já nem cocoricava direito, e a raposa devia estar com muita fome. Portanto, nada acontece por acaso.

Virou-se e caiu no sono. Um vento começou a fazer tremular as folhas das árvores e apagou a lanterna. Fato que o velho não se deu conta, continuando a dormir na escuridão total da mata.

Acordou ainda noite fechada com alaridos, gritos, barulho de cavalos correndo. Entreabriu a folhas do alto capinzal que cercava a clareira onde se encontrava e viu que a aldeia estava sendo atacada. Manteve-se quieto e observando a confusão, até que os bandidos se retiram, passando por perto do lugar onde ele estava, mas sem perceberem a sua presença.

De olhos arregalados, Toninho, Arthur e Dina assistiram o alvorecer do novo dia naquela estranha terra desconhecida. Quando amanheceu, o ancião sentou-se encostado na árvore, fez suas orações, enrolou a manta e foi para a vila.

O que viu era desolador. Destruição por toda a parte, pessoas mortas estendidas na rua, outras chorando sobre os mortos, em lamentos de partir o coração.

Procurou ajudar no que pode e assim passou o dia. Quando anoiteceu, diversas pessoas lhe ofereceram comida e suas casas para que ele pernoitasse. Ele aceitou um quarto na pequena pousada para não incomodar ninguém.

No dia seguinte, partiu.

Enquanto caminhava, pensava:

Seu eu tivesse encontrado um quarto ou um telheiro para dormir na vila, por certo, eu teria sido morto ou ferido pelos bandidos. Se o burro e o galo estivessem vivos, na certa fariam barulho, e se a lanterna estivesse acesa no local onde dormi, quando os bandidos passaram por perto teriam nos encontrado e nos matado. Meu Mestre tinha razão quando dizia que há males que vem para o bem.

E lá foi caminhando, caminhando.

As imagens se desvaneceram e quando deram de si, todos estavam novamente na varanda da fazenda, tal qual estavam quando Vovó Bia começara a contar a história. Ainda meio encantados com tudo o que assistiram.

Foi Dorinha quem falou primeiro:

— Que sono! Vou dormir.

Os três se levantaram e disseram em coro “Bença Vovó” ao que a velhinha respondeu

— Deus os abençoe meus queridos. Durmam com a proteção do Anjo da Guarda.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 17 de setembro de 2016.

Conto # 962 da Série 1.OOO Histórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 02/02/2017
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