Baltasar e as Hienas
Baltasar seguia para a Terra dos Bem Aventurados. A estrada parecia calma. O silêncio era saboroso. Apenas o vento roçando contra as folhas das árvores, o canto dos pássaros e o som dos seus próprios passos o cercavam. Seu coração estava tranquilo e seus pensamentos eram bons.
O sol já estava alto. A sua bagagem pesava um pouco. O cansaço era leve. Ainda faltava mais da metade do caminho, mas isso não o impacientava. Concentrava-se apenas no presente e observava com atenção cada detalhe deste caminho novo entre tantos outros que percorrera antes.
Repentinamente sentiu uma presença entre os arbustos. Tinha quase certeza de que era observado. Continuou caminhando e manteve a calma. A coisa sentiu-se notada. Passos rápidos sobre galhos e folhas secas se anunciaram.
Baltasar não andava armado. Tinha apenas uma pequena faca e um garfo que usava para comer. Ele avistou então um pedaço de pau. Não o apanhou, mas parou ao lado da madeira que poderia servir de proteção em último caso. O silêncio reinou novamente. Durante alguns minutos ele aguardou o desfecho da situação. Preparou-se para continuar. Quando deu o primeiro passo, quatro vultos surgiram diante dele, obstruindo o seu caminho.
Eram quatro animais. Inicialmente pensou tratar-se de uma matilha de cachorros selvagens. Mas, após recobrar totalmente o estado de calma, percebeu com clareza do que se tratava. Eram hienas que se aproximavam emitindo um riso bestial e tenebroso. A maior vinha a frente com um olhar decidido, próprio dos seres dominantes. As outras vinham em seguida, desconfiadas, com andar claudicante, dentes grandes e pontiagudos e as bocas cheias de baba.
Baltasar não conseguiu pensar em uma solução imediata. Os animais se aproximaram mais. Farejaram suas pernas e acentuaram as risadas e grunhidos. Estavam excitadas para atacar. mas sentiam-se confusas diante da calma daquele homem. Esperavam que ele corresse, se comportasse como as presas fracas e indefesas. Virou um jogo de xadrez. Baltasar sabia que estava em perigo. Contudo não sentia medo. Respondia com firmeza a cada olhar ameaçador, de forma que penetrava na alma das bestas. A hiena maior irritava-se. Parecia querer que a rendição de sua presa. As outras menores vacilavam e evitavam olhar diretamente para Baltasar. Esse diálogo de forças, sentimentos e instintos demorou um certo tempo. A grande hiena não conseguiria atacar e subjugar a sua presa sozinha. O viajante tinha ciência de que vencia silenciosamente. Sabia que apenas a firmeza e a coragem dos grandes de espírito é suficiente para intimidar parasitas e oportunistas.
Para a surpresa de Baltasar, as hienas iniciaram um curto diálogo. Falavam como gente. Contudo utilizavam frases curtas e palavras e incompletas. A língua cumprida deformava qualquer tentativa de discurso. No debate, tentaram encontrar um motivo para atacar. Mas não eram muito inteligentes. As razões eram contraditórias e toscas. Começaram a brigar entre si. Latidos, risadas e grunhidos misturavam-se a mordidas e dolorosos arranhões.
Baltasar observou tudo calmamente. Ele sabia que este tipo de conflito fazia parte da natureza dessa espécie de animal. Aquela confusão seria uma excelente oportunidade para fugir. Entretanto, se a fuga malograsse, criaria as condições para toda aquela fúria que se espalhava e atiçava as bestas se voltasse contra ele.
A hiena maior, dona do corpo mais robusto e dos dentes mais afiados saiu vitoriosa. A raiva reverteu-se em dor para as outras hienas menores. Pequenos pingos de sangue e tufos de pelos demarcavam o local da batalha. Baltasar continuou imóvel, porém sem demonstrar medo algum. A grande hiena veio na direção do viajante. Saltou em cima dele. Mas, em vez de lacerar a sua carne com potentes mordidas, rasgou apenas suas vestes. Pedaços da sua camisa eram transformados em outros menores pelas outras hienas que mordiam ferozmente os trapos com a mesma disposição que se ataca um odioso inimigo. Baltasar manteve-se o tempo inteiro frio e determinado. No fundo, não acreditava que aquele poderia ser o seu fim. Tinha pleno domínio de si. Mesmo que ali fosse o seu ponto final, ser devorado por forças animalescas e irracionais, ainda preservaria a dignidade da sua alma. Tinha plena certeza de que caminhara até ali na estrada da retidão. Tinha fé na Providência que permite que as dificuldades apareçam no nosso caminho para que possam ser vencidas. Sabia que a verdadeira força não está nos músculos, dentes ou garras, mas dentro do homem. E assim aconteceu.
Baltasar manteve-se firme até o final. A hiena grande saiu de cima dele. As hienas menores vasculharam a sua mochila. Queriam ver o que ele possuía e que poderia ser levado embora. Encontraram pouca coisa. Devoraram desesperadamente pedaços de biscoitos velhos e lutaram entre si pelas migalhas. O homem levantou. Estava um pouco arranhado. Mesmo sem conseguir ferimentos profundos, marcas de garras afiadas ficaram pelo seu corpo. A dor era pequena perto daquilo que poderia ter acontecido. As hienas foram embora contrariadas. Queriam tiram mais coisas dele. Não havia muita coisa que desejavam. Sua riqueza era d outra natureza. Baltasar perdeu as roupas, a mochila e seu objetos pessoais. Entretanto, após avaliar a situação, continuou seu caminho tranquilo. Ainda possuía seguras as duas coisas mais importantes que trazia consigo: a sua vida e a sua dignidade.