O QUE A HISTÓRIA SAGRADA NÃO CONTA

"Nós somos um só,

Somos um Universo,

Ancestrais dos que ainda virão,

Rebentos do Grande Mar Devoniano

Eternidades se escoam

Escrevendo o conto de todos nós

A cada dia, uma nova abertura

Para o maior espetáculo da Terra."

(The Greatest Show On Earth – Nightwish)

Conta-se que logo após a criação do globo terrestre ser concluída, Deus manifestou profundo interesse pelo destino dos homens sobre a Terra. Ciente de que os descendentes dos primeiros hominídeos seriam capazes de modificar a natureza do planeta de conformidade com os seus próprios interesses, além de afetar drasticamente as vidas de outros seres vivos, bem como de seus cômpares da raça humana, o Criador reuniu os mais sábios dentre os Celestiais para deliberar a respeito dos rumos futuros do mundo recém-criado.

O orbe terráqueo seria apenas mais um dentre tantos a bailar pela imensidão cósmica, mas isso não o isentava de ser alvo da mais extremada preocupação e cuidado por parte do Pai de Todos os Seres. Os colaboradores seráficos do Altíssimo, espíritos acendrados no mister do dever ao longo de milênios de peregrinações planetárias Universo afora, sabiam que o Sempiterno reclamava o seu concurso para bem mais do que o simples aconselhamento. A Divina Onisciência a tudo abarcava, contudo, não desprezava a opinião dos seus filhos, ao mesmo tempo em que contava com a sua ativa colaboração na manutenção da Harmonia Sideral.

Após a exposição dos motivos que determinavam aquele Conclave Divino, ficou estabelecido que todo o Coro Celeste, desde os Elementais até os Arcanjos Primicérios, velariam pelo destino da Terra investindo seu tempo e dedicação no progresso do planeta. Os cataclismos e alterações climáticas que se sucederiam de tempos em tempos, responderiam pelas revoluções geológicas tal qual um corpo em desenvolvimento percorrendo as diferentes etapas do seu amadurecimento. Caberia aos Celestiais inspirar aos humanos, na Terra e no Além-Túmulo, o entendimento do próprio potencial e o despertar da responsabilidade para com este mesmo potencial. O homem deveria migrar paulatinamente da condição de irresponsabilidade infantil para a assunção dos deveres para consigo mesmo e com o mundo que habitava, tal qual ocorria nos demais planos existenciais disseminados pelo Cosmo Infinito.

Uma vez fixado o programa existencial do planeta recém-nascido, restava uma última questão: estabelecer as instâncias responsáveis pela Justiça, observando o seu aspecto tríplice de imputação, expiação e reparação.

Dentre os Primicérios, dois se encontravam sumamente gabaritados para esta tarefa: Miguel e Lúcifer. Para Deus não havia dúvida na decisão a ser tomada, mas os dois arcanjos, apesar de extremamente esclarecidos, ignoravam o desfecho que viria a seguir, já que a Onisciência é atributo exclusivamente divino.

Espíritos burilados nas lides da mais alta virtude através dos milênios, Miguel e Lúcifer divergiam em dois aspectos bastante específicos, apesar de conservarem uma afinidade de alma que transcendia os milênios e mesmo a própria condição humana, que já haviam deixado para trás havia eras. Miguel amadurecera e despertara para a Angelitude a custa de lutas ingentes e ferozes contra a iniquidade. Era um batalhador, um autêntico Guerreiro Celestial que muitas vezes fazia valer a justiça como um general severo disciplinando os seus comandados num campo de batalha. Quanto a Lúcifer, era tido como o mais sábio e esclarecido dos Primicérios. Diferentemente de Miguel, ele fizera o caminho inverso ao do irmão e alcançara a Iluminação mediante a confrontação das suas questões íntimas, em pugnas aspérrimas que não haviam se desenrolado no âmbito da exterioridade, mas sim na solidão profunda de seu próprio ser. A alcunha de Portador da Luz com que era geralmente designado fazia referência à conquista de si mesmo, que ele levara a efeito através do embate ferrenho com o que a franca maioria dos mortais prefere ignorar e evitar: a sua própria escuridão.

Ambos os Arcanjos preenchiam todos os requisitos para exercer a Justiça Eterna junto à humanidade terrena. Restava apenas determinar que função caberia a cada um dos Celestiais designados. Foi quando o Criador declarou com voz potente, mas plácida, como o ronco de um trovão que se convertesse subitamente no crescendo de uma orquestra de harpas:

- Meus filhos, com isto está devidamente traçado o programa existencial da Terra e as atribuições que caberá a cada um de nós na economia existencial do novo orbe. Falta-nos tão somente estabelecer como funcionará a Justiça para os espíritos que trilharão as sendas encarnatórias do nosso novo educandário de almas. De forma que, para estabelecer como esse dispositivo fundamental para o crescimento do ser irá funcionar a contento, preciso que todos, especialmente vós ambos, Lúcifer e Miguel, observem atentamente o quadro que irei mostrar agora.

No meio do Areópago Celeste, ao redor do qual Deus e os representantes dos Coros Celestiais se reuniam, materializou-se o surgimento e a evolução do planeta em todos os seus lances mais dramáticos, desde o momento em que o globo se destacou da nebulosa solar, até o instante em que ele viria a desaparecer, milênios mais tarde, devorado pela supernova nascida da mesma estrela que lhe forneceu luz e calor durante incontáveis eras. No visor astral, as primeiras formas de vida surgidas na Terra foram gradualmente migrando para estruturas mais complexas. Microorganismos e algas unicelulares saíram de cena, dando lugar a insetos e aracnídeos que, a seu turno, cederam espaço aos gigantescos sáurios que dominaram o palco da superfície terrestre, milênios antes da ascensão dos mamíferos. Por fim, o surgimento do homem deu início ao capítulo mais palpitante da História Planetária. Dos primeiros antropóides às grandes civilizações da Antiguidade, passando pelas Grandes Navegações e os avanços da Era da Informação, até a conquista de uma era de prosperidade e paz, onde a humanidade se tornaria capaz de habitar o planeta e zelar pelo seu equilíbrio, todos os olhos se mantiveram atentos a cada mínimo lance que se desdobrava na tela astral conjurada pelo Criador. Os dois irmãos, contudo, se mostravam sobremodo afetados pelas cenas que testemunhavam na marcha existencial do homem. Atos de suma nobreza se alternavam com gestos de indescritível hediondez por parte da humanidade no decorrer dos séculos terrestres. Por fim, Deus dissolveu o visor no centro do Areópago e interpelou os dois arcanjos acerca do que deveria ser feito para que o homem fosse trazido à responsabilidade para consigo mesmo, para com o seu semelhante e para com o planeta como um todo, ressaltando que todos os eventos ali eram possibilidades e não fatalidades, dada a existência do livre-arbítrio para todos os seres da Criação.

Miguel foi o primeiro a se manifestar e fê-lo da forma que lhe era característica:

- Meu Pai e Soberano de toda a Criação – declarou com voz grave – Tendo em vista a natureza dos espíritos que virão habitar este planeta e os muitos desmandos que a humanidade terrena virá a praticar antes de alcançar o esclarecimento necessário, proponho o uso do rigor extremo para com as transgressões humanas. Assim como o carvão requer a pressão do seio da terra e as suas muitas intempéries para se converter em diamante, também a humanidade terrena irá requerer sucessivos golpes do destino e da natureza para fazer luzir a sua essência celeste. Para cada ato iníquo que a justiça dos homens não consiga alcançar, devemos ministrar através da própria Terra o merecido castigo. O clima e as revoluções geológicas deverão fazer da dor a via de encontro do sujeito para com as suas próprias questões, fazendo-o de forma que não haja como sofismar a responsabilidade pelos próprios atos. Além disso, periodicamente espíritos engajados na prática da Justiça enquanto punição deverão se imiscuir entre os humanos, sempre que eles multiplicarem recursos de ilusão e irresponsabilidade para com os próprios atos.

O Criador assentiu com um sorriso, agradecendo a Miguel pelo seu parecer. Em seguida, instou Lúcifer a se pronunciar:

- Pai de Todos Nós, Pai de Todos os Seres e Sempiterno Monarca – iniciou o arcanjo com o seu tônus solene – Concordo com as palavras de meu irmão no que tange a responsabilizar os humanos pelos seus atos, mas me permito acrescentar: os atos são a mera conseqüência dos sentimentos, emoções e pensamentos. Não tenho dúvidas de que Miguel dispõe de competência mais do que suficiente para exercer a Justiça no seu caráter de imputação sobre a Terra, mas o que será do Além-Túmulo? Se não houver dispositivos capazes de ir além da mera punição terrena, o homem se servirá do esquecimento subseqüente ao renascimento para repetir os mesmos erros. Independente do planeta, em se tratando de espíritos que iniciam a sua jornada existencial rumo à inexorável conquista de si mesmos, a morte ainda é sinônimo de inquietação e terror por deixar o indivíduo desnudo diante das próprias questões. Defendo desta forma, a necessidade de fazer com que a Justiça no seu aspecto triuno de punição, expiação e reparação tenha no Além-Vida a possibilidade de fazer o espírito ficar diante do espelho e contemplar as suas próprias vicissitudes. Por experiência própria, sei que não é possível alcançar a Iluminação sem olhar fundo nos olhos da própria escuridão interior. O próprio Universo, Teu trono e também o único livro capaz de testificar de Tua Grandeza, porque escrito pelo Teu próprio Punho Divino, dizem desta verdade, ao exibir a magnificência de estrelas e sóis multicores por entre a escuridão do Cosmo Infinito. Sem dúvida, magotes de almas humanas hão de cruzar a fronteira entre os dois planos primeiros da existência, carregando consigo dores e estigmas atrozes após findar a peregrinação terrena. E é justamente este o momento de fazer com que estas mesmas almas possam regressar à carne mais aptos a se haverem consigo mesmos, a fim de, no futuro, estarem também a Teu serviço como ora nos colocamos à Tua disposição, neste Areópago, onde deliberamos sobre os rumos de mais uma escola de almas por Ti concebida.

Mais uma vez o Altíssimo sorriu e agradeceu, enquanto Lúcifer voltava a tomar assento ao lado de Miguel, que o acolhia com um sorriso franco e com tapinhas nas costas. Após uma breve pausa, adredemente calculada pelo Criador para que a assistência pudesse absorver melhor a argumentação dos dois postulantes ao Ministério da Justiça Eterna junto à humanidade terráquea, o Sempiterno finalmente se pronunciou:

- Não esperava menos de dois dos meus mais gabaritados arcanjos – declarou com a bonomia de um pai orgulhoso de sua prole – e, embora já antevisse o final deste conclave, fazia-se necessário que vós ambos expusésseis os vossos respectivos pontos de vista. De forma alguma poderia prescindir do concurso de tão valorosos Celestiais da vossa envergadura. Assim, proclamo que tu, Miguel, ficarás incumbido de vigiar a humanidade quando na Terra e suscitar dentre os seus membros aqueles que se erguerão contra a iniquidade, a fim de lembrar aos homens que são responsáveis tanto pelo bem quanto pelo mal que as suas organizações e atos venham a trazer para si mesmos. General da Justiça Iniludível, sabes como ninguém recrutar guerreiros para a tua causa e formar hostes invencíveis, tanto entre os encarnados, quanto entre os Celestiais. Quanto a ti, Lúcifer, velarás pela humanidade desencarnada desfazendo no Além-Túmulo os véus do engano em que os homens venham a se enredar, a fim de que possam voltar às sendas da carne mais despertos e mais responsáveis pelo próprio destino. Sendo tu o Portador da Luz e o mais sábio dos Primicérios, és de longe o mais capacitado para fazer o homem enxergar para além das trevas da própria ignorância, fazendo germinar em seu coração o desejo e a sede do saber, que hão de guiá-lo à verdadeira liberdade, à mesma Iluminação da qual te fizeste tão digno portador.

Os dois arcanjos entreolharam-se surpresos. Supunham que o Pai Celeste iria acolher apenas uma das propostas, mas Ele, como sempre, surpreendera-os. Sumamente satisfeitos pela confiança depositada, ambos se prosternaram ante o Sólio Divino agradecendo efusivamente e entoando protestos de dar o melhor para guiar a humanidade do recém-criado planeta através da senda redentora da virtude.

Dissolveu-se em seguida a assembléia, por entre cânticos e abraços em que reafirmavam o propósito de seguir cooperando para a harmonia do Celeste Concerto.

Nas eras que se seguiram a este Divino Conclave, Miguel, Lúcifer e todo o Coro Celeste seguem levando adiante o compromisso assumido no Areópago, diante do Onipotente. A humanidade terrena, por outro lado, segue morosamente a sua trajetória, multiplicando esforços no sentido de obstar os Divinos Ditames. Miguel não cessa de estimular a Justiça, ainda que os mortais lutem por sufocá-la com caprichos e atos muita vez execrandos. Lúcifer prossegue em sua tarefa de abrir os olhos aos espíritos que atravessam a fronteira do Além-Túmulo, ministrando a Justiça Iniludível no plano astral, ainda que magotes de almas humanas tenham urdido mitos injustificáveis sobre uma absurda rebelião angelical para lançar ao Portador da Luz a responsabilidade pelos próprios maus atos que, com o tempo, ganhou força de fé religiosa e se converteu em salvaguarda de uma ignominiosa posição de inimputabilidade.

Não obstante, malgrado toda a recalcitrância humana, os dois Primicérios continuam em seu incansável labor, amparados pelo Criador e secundados por legiões de colaboradores espalhados na Terra e no Espaço. Responsáveis pela Justiça, Miguel e Lúcifer sabem melhor do que ninguém que ela não se limita apenas à punição dos culpados. A Justiça, na acepção mais estrita do termo, reside na correção do erro e na reparação do mal e a humanidade terrena, cedo ou tarde, há de se haver com este aspecto trino da Justiça Celeste. Ainda que não venha a se dar conta de que o faz.

Alan Thanatos
Enviado por Alan Thanatos em 07/11/2016
Reeditado em 08/11/2016
Código do texto: T5816514
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