Sereia fora do mar...
Sereia fora do mar:
Uma fábula de Lou de Olivier
(escrita em 1999)
Era uma linda sereia recentemente saída do mar com a promessa de nove anos de vida entre os humanos. E, se encontrasse um amor realmente verdadeiro, poderia viver para sempre longe do mar. Tinha o ventre muito fértil, o coração repleto de amor. Os seios eram fartos, cintura bem fina, quadris bem torneados e, ao sair do mar, ganhara lindas e roliças pernas.
Caminhava sem muita segurança pois, seus recém nascidos pés e pernas ainda não lhe permitiam pisar firmemente o chão.
Por onde passava, ajudava a todos sem distinção. Era ainda muito inocente. Não conhecia os males do mundo, não era capaz de entender o quanto a vida pode ser dura com quem não se resguarda.
Sofreu, pela primeira vez, a agressividade humana, alguém a ameaçara com uma arma e se viu diante de um policial que ouviu sua queixa. Aos seus inocentes olhos de sereia, o policial lhe pareceu tão forte e atencioso, tão disposto à protege-la e livra-la do perigo! Ela imaginou ser possível prolongar este momento de forma eterna, mas isto não aconteceu.
Insensível, o policial mostrou a ela uma fotografia, dizendo ser de sua noiva. Na foto havia um ser muito gordo, desproporcional, era uma baleia enorme.
Magoada, sentindo-se rejeitada, a sereia despediu-se, imaginando nunca mais procura-lo.
Seguiu seu caminho entregando-se de corpo e alma a tudo o que julgasse justo e bom. Amava as pessoas, doava-se sem esperar reconhecimento e, por toda esta nobreza, pagava um preço altíssimo. Numa ocasião foi assaltada, em outra envolveu-se num acidente de trânsito. Em meio a vários incidentes, os homens a viam como um objeto, achavam-se no direito de usa-la e, quando esta se revoltava, queriam vingança. Um deles até chegou a ameaçar mata-la.
E, em todas as vezes em que se via em apuros, ameaçada ou apenas solitária, a sereia mesmo sem querer, lembrava-se do policial. O único que parecia trata-la com respeito. Ela o chamava, ele vinha, ajudava-a como podia, depois, ia-se embora. A sereia pensava ser amor, mas ele só cumpria sua sina de policial, admirando-a a distância. E assim passaram-se sete longos anos.
Um dia a sereia, sentindo-se solitária e ameaçada por um desconhecido, procurou por seu protetor, mas ele não mais estava lá. Havia se mudado e ninguém sabia de seu paradeiro. Saiu então, desesperada, à procura do policial e só o encontrou após vários meses e, curiosamente, percebeu que ele continuava no mesmo lugar de sempre.
Talvez por medo de perde-lo, de seguir sua vida desprotegida ou até mesmo por amor, a sereia o seduziu. E os dois se amaram muito e de forma tão intensa que parecia finalmente eterno. Mas também não foi desta vez.
O policial estava sempre muito ocupado, quase nunca podia estar com ela. A solidão e desproteção continuavam sendo suas companhias e assim passou-se mais um ano em que a sereia tentou, em vão, entender porque o único homem que julgava decente em sua vida parecia não enxerga-la.
Seu prazo estava esgotando-se. Teria apenas mais um ano para adaptar-se aos humanos ou deveria voltar ao mar para sempre. Decidiu ir até a casa do policial. Não queria vê-lo. Queria apenas conhecer sua casa, sua família e, quem sabe, entender porque ele parecia não enxerga-la. Por isso, foi à casa justamente no dia do plantão dele na delegacia.
Ao entrar na casa, admirando várias fotografias que lhe foram mostradas, ela logo entendeu: Lá estava seu grande amor, com várias baleias. Em cada foto uma baleia maior que a outra e ele feliz cada vez mais agarrado a elas.
Triste, a sereia despediu-se de todos, deixou um pequeno bilhete para ser entregue ao policial e decidiu voltar ao seu mar de onde, talvez, nunca devesse ter saído.
Enquanto caminhava, pensava que de nada lhe adiantara a beleza, a fertilidade, o corpo escultural e seu grande e nobre amor, já que seu escolhido não a queria e só pensava em pescar baleias...
Chorando muito, a sereia entrou no mar. A medida em que caminhava pelas águas, suas pernas amoleciam, transformando sua lisa pele em escamas e suas pernas em nadadeiras. Seu ventre partiu-se , espalhando seus óvulos pelo mar e estes misturados à água pareciam apenas espuma nas ondas. Foi-se afundando até que suas lágrimas misturaram-se às ondas e seu corpo, meio mulher meio peixe chegou bem ao fundo do mar.
Neste momento o mar, revoltado, levantou tantas e tão altas ondas que invadiu as muretas, atravessou as calçadas e inundou toda a região. Do outro lado da cidade, o policial lia seu bilhete que dizia algo assim: “Se para ti uma sereia parece intocável e uma baleia apenas uma presa fácil, então não tens amor em teu coração e és indigno para mergulhar nas sagradas águas do mar”.