Morte Desentendida

Me enterraram em cova rasa, dessas que não chegam a sete palmos. Mas mesmo aqui, quase sob e sobre a terra, continuo mais vivo que sanidade no fim da tarde. É tumba pequena, não consigo esticar os pés e a pressão dos joelhos me abafa o peito. Quando venta sinto o ar nos cabelos e quando chove não demora muito para a água me encharcar todo. É assim que passo os dias desde que estou cá, meio morto, meio vivo, e é por esse motivo que venho contar todo o acontecido, os diversos motivos, ou falta dos mesmos, que não me deixam perecer e viver do lado de lá em paz. Dizem que morte sem explicação é morte não morrida, mesmo que seja matada.

Então estamos cá e voltemos um pouco nos dias, talvez até em alguns anos, tudo tem seu começo quando surgi encima deste mundo pela primeira vez, vim matuto que nada tinha a fazer cá, nasci bezerro velho com preguiça de chorar. Mas como das prenhas não se pode nada negar e a vida insiste em continuar, acabei por me manter mesmo neste mundo. Tenho nome de gente bonada: Patrício. Nome de gente que tem bolso tão cheio que as calças vem a cair. Mas de nada adiantou graça abastada, continuei pobre como vim e mesmo agora, nesse calabouço terreno, continuo pobre como fui. Quando criança andei muito por estas estradas, não parava de casa em casa por mais que alguns dias, minha mãe se foi cedo e eu estava a ficar nestes tempos com minha tia Josia. Essa tinha o ventre mais que amaldiçoado, era ventre que invés de dar vida, só dava morte, é coisa medonha de se contar hoje em dia, e até mesmo na época, mas Tia Josia paria cada ano um e nenhum deles sobravam para o seguinte, me falavam que era culpa das redondezas que andava e que essa coisa de se embrenhar com homem a cada momento da vida de nada ia adiantar, o problema não era coisa de macho, mas sim da fêmea.

Juro que tentarei o mínimo me embolar nas lembranças que de nada vão explicar a minha situação atual. Mas é difícil não achar significado em tudo.

Tia Josia passava cada temporada em uma cidade, prenha de barriga, tão estofada que não podia se mexer, logo achava um parente qualquer para nas vidas se esmoecer. Assim seguia junto eu, pivete de idade e já cansado de tanto caminhar sem a lugar nenhum chegar. Reclamar eu reclamava, mas de que adiantava? Eu era sombra de coisa qualquer, vulto de existência inoportuna ou um projeto descabido. Dessa criação despegada de local logo passei a despegar de amores também, quando cheguei na idade de me enroscar em mulheres, procurei em todas tudo que sentia falta mas nem sequer percebia. Se minha Tia Josia, já falecida justo no parto do único que vingou: Primo Tinhão, era mulher de tantos homens, eu perseguia caminho quase contrário, era garoto de muitas mulheres. Me estabeleci no fim dos vinte anos por cá, Terra de São Estácio, mesmas redondezas onde se encontra esse túmulo mentiroso de minha situação, e por essas bandas iniciei nova caça nos outros, ou melhor, nas outras. É nesse momento que nos aproximamos de onde quero chegar, de onde quero começar a costurar minha passagem para a morte, a que tanto aguardo. Pois, imagino eu, foi numa dessas enroscadas, ou talvez em todas, que me meti nessa situação.

Olha, entender de amor mesmo eu não entendo, não sou desses que entulham palavras em cima das outras tentando explicar o amor. Amor pra mim é subir num quarto, rolar na cama pra depois desapegar num pegajoso suor. Acho que assim que é e tal, amor é devaneio para quem pode, não para quem quer, e eu sou dos que não podem nada. Explicitado os entendidos demonstro, ou tento, que não é amor que buscava nas diversas camas que sujei com minha pele, era sim algo diferente, era um sentido que sinto faltando desde que vim madrugado para esse mundo. É que me sinto quebrado, metade de mim não pariu com o resto e faleceu dentro de minha mãe, foi-se e então cabei-me partido. Tão assim que piorou com minhas partidas repentinas, por esse mundo de horizontes redondos fui largando pedaços, migalhas por onde passava e logo percebi que nada de mim tinha sobrado. Quando encontro uma mulher me aproximo buscando mais que alguém, estou buscando eu mesmo, não que eu seja uma delas, ou nenhuma, mas é que por representarem o outro lado do rio do sexo que mantenho a esperança de me ver refletido no que percebia que não era. Descobrir pela falta, pela diferença, qual seria a minha existência. Mas tolo eu fui perceber tarde demais que existem mais mulheres que estrelas, e que diferente das resplandecentes voadoras, elas não brilham por igual. Naquela época mal sabia disto, e nada adianta saber por já, feito é feito e o acontecido vai deixando cicatrizes. Me marquei com todas, nadei no rio que nos separavam mais vezes que o andar pela borda, virei peixe e me afundava mais no lodo que hoje recheia o contorno de meu corpo, esse semi-enterrado. Fui assim na correnteza do falso amar, mas do verdadeiro procurar.

A solidão pairava em todos os atos, eu sou homem e ser solitário por nascença, dessa ninguém me tirou ou tirará. Quando tocava-as, na verdade me tocava; quando olhava-as nos olhos, na verdade buscava meu reflexo; quando cheirava os pescoços buscava o resto de meu cheiro. Sua diferença era o meio de perceber minha originalidade. Falsos atos para elas, palavras não para soarem doces, mas sim para poder ouvir de minha própria voz, não dessa interna que pensamos, mas da que usamos para cantar à vida. A solidão permeava cada caminho traçado, e dessa vinha também a falta de todo o meu sentido. Falta, uma das palavras mais fortes que ouço e ouvi.

Talvez dizendo cá tudo isso, explicitando aos poucos para mim mesmo minha morte e vida, soarei como alguém profundo, mas nada! Mal podem saber, se não me conheceram andando entre vocês, o quão pitoresco e malandro me formei em cima da terra. Assobiava a cada esquina e andava em gingados nunca vistos antes, era procurado por todos os touros coronéis que pus mais chifres dos que já tinham, era procurado sim porque não escondia de nada minhas aventuras, a mesma solidão inconsciente que mostro hoje para vocês me levava fazer de tudo e a muito me importar com nada.

Naquele tempo mal sabia das coisas, vivia por viver. Era fim de tudo, nem começo nem meio, somente fim. Bebia por sede e não por prazer, este vinha do nada a fazer por algo, senão pelo ato de si mesmo. Hoje percebo que ontem fui um tolo que bem viveu de coisa alguma, senão pelo sorriso maroto estampado no rosto.

Uma das ultimas pernas que encostei foram as de Betina, mulher de coxas grandes, de cintura arqueada e risada gemida que vinha do fundo da alma. Essa era mulher de um fazendeiro dos grandes, homem rico que vendia café sempre nas cidades longes, e por isso mesmo nunca estava onde deveria estar, deixava sempre o vácuo por onde passava e Betina ia definhando sua juventude dentro da casa de dois andares. Logo menos comecei a reparar, sempre que levava primo Tinhão para estudar que Betina pousava o busto na arcada do parapeito e não parava de me olhar enquanto passava. Era olho de fome, posso não entender quase nada, ou metade de quase sobre o amor, mas de desejo eu percebo até vendado. E nesse vai-que-vai dos dias e dos olhares me propus adentrar no recinto e ver qual que era de tal mulher. Betina não saia de casa nunca, ou quase nunca, uma vez ou outra tinha que ir mesma, seguindo rotina despreparada, comprar os alimentos que somente ela e os empregados iriam comer. Nesses pontos, imagino eu, já até esquecia do rosto do marido, de tão ausente que esse se fazia, estando sempre dia não e dia nem pensar. Foi-se que em dia de noite nublada e lua nova adentrei pela janela da rua na casa de Betina e de seu ausente marido. No principio se fez vontade de assustada, forçou um grito esmoeçido e quis me botar, com força nenhuma, para fora. Foi em tanto fingimento que nem dada meia hora já estava a rolar no tapete e a me agarrar. A sumidez do marido acendera uma fogueira em Betina que chegava até me queimar quando lhe tocava nas peles. E assim que eram as semanas, passava mais que tempo lá em aquele recinto, ainda a me buscar e preso sem perceber pela mulher que nunca deixava-me passar sem pousar os dois olhos por inteiro em mim. E assim, na vontade que crescia e me sugava dela que fui percebendo aos poucos minha não-vontade e da fuga surgiu rabisco do que eu seria.

- Vais embora? – me perguntou já prevendo minha fuga.

- Tenho que ir, já não dá mais isso tudo, teu marido é gente que tem mais bolso que músculo, mas pode me ferir mais que qualquer garanhão.

- Ele não volta, e agora tu vais.

- Mas assim tem de ser.

- Tens porque tu queres, por mim vivia cá.

- Tôu a dizer mulher, teu homem aparece qualquer hora, daquelas não previstas e estamos os dois com os vermes na mesma noite.

- Pra mim ele nem sequer existe mais, já é ilusão de crença.

Sabia naquele momento que estava nada bom previsto pra mim, eu me adentrara na tal busca em terreno de outro, estava tocaiando o coração que não queria e não devia. Mas correnteza contrária é mais forte que a seguida, e mais outro dia voltei para vê-la e despedir de minha presença. Fatídico dia, ou melhor, noite. Subi cauteloso, chamei de leve e adentrei como gato gatuno no quarto, justo no momento que olho na cama percebo que Betina não era de estar em lugar nenhum, no lugar dela o marido sumido é que aparecera. “Então é tu o descarado?” Já nem mais sabia que responder, parei gélido de tanto tremer, ensaiei uma resposta em alguma língua, mas a minha já se dobrava de forma a não responder. Ali na minha frente se materializava todos os cornudos que deixei na vida, o marido desaparecido nem sequer tinha face, era todas numa só, entidade vinda do nada para me julgar de nada saber. Queria responder que descarado era ele, pois aquilo na face era tudo, menos rosto, mas de nada ia adiantar, eu já estava julgado e condenado sem direito à nenhuma resposta.

Então de repentino surge uma dessas armas de atirar apontada para mim. “Senhor, só me deixa passar essa vez, te peço, te suplico até de joelhos, mas não atira e tira a única coisa que tenho pra mim. Juro que não se repete, foi coisa despensada vir ver tua mulher”.Eu caia de joelhos e chorava de leve. “Não te mato por ter minha mulher. Essa tanto faz, nem sequer é minha. Te mato é sim por roubar eu de mim mesmo, roubaste meu lugar, o único que nunca freqüento e único que sequer existo, e por roubar eu mesmo que te mato, assim como todos de antes fariam o mesmo”.

Foi então nesse momento que a falta de sentido cresceu ainda mais, e é nela que me assento hoje. Depois do disparo fui jogado na calçada e deixado esperando o dia raiar. Tinhão e Zé de Nada que me pegaram lá pelo meio dia e retiraram as moscas de mim, cavaram uma fossa rala, essa que estou, e me deixaram aqui sem entender nada todos esses dias. Como será que está Tinhão? Agora que me lembro dele, miúdo tão sofrido, só lhe falta acabar por seguir meus passos e se perder em caminho nenhum. Foi por isso que estou cá a falar, estou a escrever algum rumo para toda essa desconexão que foi minha vida, a procurar mais uma vez, agora dentro de o que fui, quem sou. A última fala do cafeeiro que me deixou a perceber toda a minha despercepção, foi ele, homem que apunhalei pelas costas que me abriu os olhos no tiro.

Espero então mais dias até que meu repensar todo possa cavar mais fundo essa cova, e finalmente eu possa me embrenhar em nenhuma perna, mas somente na terra, me juntar dela e seguir assim para uma eternidade que me foi negada nesse meio existir que sigo agora, sem saber mas sem desconhecer.

Rodrigo Burguete
Enviado por Rodrigo Burguete em 08/09/2016
Código do texto: T5755007
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