Guano
Silêncio. O sol se põe no horizonte. Seus últimos raios trespassam a copa das árvores, fornecendo um espetáculo de luzes alaranjadas conforme os raios rebatem em cada folha que ainda resiste ao outono. A maioria dos animais começa a se preparar para ir dormir. Mas não eles. Eles, que dormem quando o sol está a pino e só despertam quando este se retira. Eles, que com suas grandes asas negras inspiram contos de horror e mistério desde o início da humanidade. Morcegos, criaturas da noite, dormindo de ponta cabeça no interior de uma profunda caverna onde pouca luz chega, mesmo nos dias mais claros. Aqui, nesta caverna, onde a escuridão reina absoluta. Morcegos aguardam com ansiedade o sol se pôr. Ansiedade. A calmaria que antecede a tempestade. É chegada a hora. Primeiro um, depois outro. O teto da caverna parece ganhar vida quando os morcegos alçam voo em direção ao crepúsculo. Asas farfalhando num redemoinho infernal. Barulheira dos diabos. São centenas, milhares e milhares de pequenas criaturas negras partindo em revoada em direção à floresta onde procuram frutos e insetos para se alimentar. Voam em formação, uma grande nuvem negra e disforme ganhando os céus da noite. Aos poucos esta nuvem diminui conforme cada indivíduo parte em outra direção.
Silêncio. A caverna está em absoluto silêncio depois que os morcegos partem. Mas não são apenas eles que habitam esta caverna. Existe uma série de outros pequenos animais e insetos vivendo aqui. Seres que, ao contrário dos morcegos, jamais deixam a segurança da caverna, vivendo do começo ao fim de suas vidas sob o manto das trevas eternas. Seres que rastejam, escalam e trepam pelos pequenos cantos. Formas de vida curiosas, como uma salamandra completamente cega ou uma aranha idêntica a um escorpião. Trogloditas. Besouros, escaravelhos, lesmas, centopeias. Artrópodes, crustáceos, anfíbios, insetos. E baratas. Centenas de milhares de gigantescas baratas infestando o chão da caverna. Blaberus giganteus. Baratas medindo de sete a dez centímetros de comprimento, algumas tão pesadas que sequer conseguem voar. Mas mesmo as que conseguem voar não o fazem. Tudo o que precisam pra viver está bem ao alcance, no chão da caverna.
Silêncio. A noite está mais escura, o que significa que em breve o sol irá nascer. Não que isso importe muito para as criaturas que vivem na caverna, mas o sol nascendo significa que os morcegos voltam. Um som distante, mas muito familiar. Cada vez mais alto. Cada vez mais perto. Milhares de asas batendo e gritinhos agudos. Bem a tempo. Os morcegos entram aos montes, voando em círculos no pequeno espaço da caverna. Uma verdadeira algazarra aos olhos dos outros, mas, na verdade, é um balé bem sincronizado. Graças à sua capacidade de sonar cada morcego sabe exatamente onde estão seus companheiros, e por isso raramente eles se chocam no ar. Um rasante, uma pirueta, um looping. Com a astúcia de uma águia, os morcegos exibem orgulhosamente sua coreografia negra. Orgulho. Se tem uma coisa que os morcegos são, são orgulhosos. Adoram mostrar suas incríveis acrobacias. Dançam e rodopiam até dizer chega. Pousam de ponta cabeça. Cada morcego encontra seu espaço no teto da caverna, ao lado de um parceiro ou de um filhote, cada animal sabe o seu lugar. Como boêmios no raiar do dia os morcegos ainda fazem barulho, mas aos poucos vão silenciando. Enquanto isso, lá embaixo, no chão da caverna, as enormes baratas se agitam. Os pequenos insetos e frutos são digeridos pelo morcego. Guano. Suas fezes, ricas em nitrogênio, amoníaco, sais e ácidos, constituem a principal dieta das enormes baratas. Aos poucos as fezes caem no chão da caverna e as enormes baratas se atropelam, desesperadas em saciar sua fome. As baratas estão sempre com fome. Não importa a quantidade de fezes que consomem numa noite. As baratas sempre têm fome. Lá de cima os morcegos orgulhosos se divertem com as baratas lutando entre si por um pouco de fezes. Bosta. A vida da barata depende de bosta de morcego. Lá de cima os morcegos orgulhosos se divertem com as baratas lutando entre si por um pouco de bosta. Se amontoam, se matam umas às outras por um pouco de bosta. Dão graças a Deus, felizes da vida, enquanto os morcegos orgulhosos defecam sobre suas cabeças. Dia após dia. Ano após ano a vida da barata tem se resumido a isso. Milhares de morcegos defecando orgulhosos sobre suas cabeças. E a barata agradece pela bosta. Mas a barata tem fome. A barata sempre tem fome.
Silêncio. O sol se põe no horizonte. Seus últimos raios trespassam a copa das árvores, fornecendo um espetáculo de luzes alaranjadas conforme os raios rebatem em cada folha que ainda resiste ao outono. A maioria dos animais começa a se preparar para ir dormir. Mas não eles. Tão logo o primeiro morcego desperta, logo centenas de outros o acompanham. Num redemoinho de fome e trevas os morcegos exibem orgulhosos seu bailado infernal aos habitantes da caverna. Especialmente às baratas, que se agitam lá embaixo, contentes em ver os morcegos partir. As baratas têm fome. Logo os morcegos irão voltar e defecar em suas cabeças, trazendo alimento e nutrientes essenciais. A dança é pra lembrar às baratas quem defeca em quem. Eles, os morcegos, se orgulham muito disso. Um deles, especialmente orgulhoso, se diverte dando rasantes sobre as enormes baratas, assustando-as. Faz graça, cheio de confiança e malandragem.
Mas confiança em excesso às vezes cega até mesmo criaturas capazes de enxergar no escuro. O morcego orgulhoso, brincando e zoando, voando e cagando, inspirando horror às baratas, o morcego orgulhoso não percebe quando outro morcego vem em sua direção a toda velocidade. Acidente. Colisão. Os dois morcegos batem com força. Um deles consegue recuperar o voo e pousa no teto da caverna assustado. O morcego orgulhoso não.
Silêncio. Os morcegos se foram todos. Todo menos um. O morcego tenta levantar voo, mas suas asas estão quebradas. Dor. Emite sons desesperados. Seu orgulho está despedaçado como suas asas. Ele implora por ajuda, mas nenhum morcego vem ajudar. Ele tenta se mexer, mas suas patas também estão machucadas. Caiu com muita força no chão da caverna e as baratas fugiram de medo. Medo. As baratas já não tem medo. Observam da escuridão, avaliam, calculam. As baratas têm fome. Muita fome. Primeiro uma, depois outra. O chão da caverna parece ganhar vida quando as enormes baratas caminham em direção ao morcego caído. Dezenas de pequenas patas manipulando o morcego. Medo. O morcego apavorado tenta de todas as formas se libertar das baratas, mas elas têm fome. Pequenos pedaços de pelo, pele e músculos vão sendo devorados. As baratas estão por toda parte. Estão devorando as asas. Estão devorando as patas. Estão devorando a cabeça. Mal há espaço para respirar, pois as enormes baratas o estão devorando. Baratas que chegam a até dez centímetros de comprimento. Baratas tão pesadas que sequer podem voar. Mas mesmo as que conseguem não o fazem, pois no chão da caverna está tudo de que precisam. Bosta. Guano. Fezes de morcego. Mas às vezes um morcego cai no chão e as baratas o devoram lentamente por horas e horas. E mesmo depois de devorar um morcego inteiro, as baratas continuam com fome. As baratas sempre têm fome.
São Paulo, vinte e quatro de julho de dois mil e dezesseis.