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Em Narcisópolis, vilarejo que segundo a lenda foi edificado por descendentes direto de Narciso, [Aquele que por conta de sua exuberância fez até as ninfas se apaixonarem], e de Absalão, que foi em seu tempo, o homem mais bonito de Israel, perfeito, como todos os habitantes dali. Havia não poucos, que consideravam os atributos físicos mais importantes até do que a própria vida, e era comum a mumificação. Quem podia pagar pelo serviço, suicidava-se antes que aparecessem os primeiros sinais de envelhecimento para permanecerem eternamente belos.

O rei Zerá fez jus a essa dinastia de Apolos. Corpo esguio, pele cor de alcatrão, tranças na cintura, semelhantes a cipós. Ele e a falecida rainha Ivis tiveram dois filhos, Ambú e Zacur, a tão aguardada menina, que assumiria o trono no tempo determinado, segundo a tradição de alternância, após um homem devia sempre reinar uma mulher e vice e versa. Zerá, por exemplo, sucedeu sua mãe.

Mas Narcisópolis caiu em maldição, pois seus habitantes não mais ofereciam cacos de espelho no altar do deus Lumuenu, como era de praxe. Por isso, Zerá mandou quebrar todos os espelhos que revestiam as paredes da aldeia e os interiores das casas para serem ofertados a Lumuenu, a fim de aplacar sua ira. Zerá também expulsou todos da aldeia, exceto os cegos e as crianças de 3 anos para baixo. Pois ninguém mais naqueles domínios poderia se olhar no espelho até a maldição ser quebrada. A partir daquele momento, segundo Zerá, que afirmou ter recebido tais instruções através dum sonho , o povo só poderia contemplar os seus próprios, e os encantos alheios, através do reflexo dos espelhos sagrados, a olhos nus ninguém mais seria capaz de perceber sua verdadeira imagem. O que veriam quando se olhassem seria uma ilusão de ótica, fruto da ira de Lemuenu, a única poupada da maldição seria Zacur, a futura rainha. O rei Zerá no leito de morte fez Ambú jurar que cuidaria da irmã até ela assumir o trono.

Uma nova geração de narcisopolitanos cresceu, Zerá, anos antes de falecer mandou revestir novamente toda a cidade de espelhos, pois Lumuenu havia se acalmado. Enfim chegou o dia de Zacur, que ainda não tinha sido vista pelo povo, ocupar o trono de Zerá seu pai, e Ambú preparou uma grande cerimônia para a coroação da irmã, quando a multidão se deparou com a beleza dela, todos gritaram uníssonos: “Rainha-deusa, rainha-deusa...!”.

Zacur era arrogante, e sempre que podia humilhava seu irmão Ambú. Na festa anual oferecida ao deus Lumuenu, Zacur novamente o humilhou em frente aos súditos, Ambú dessa vez não suportou e trouxe a baila um grande segredo: Povo de Narcisópolis, nunca houve nenhuma maldição por parte do deus Lemuenu, isso não passa duma história inventada por meu pai, o falecido rei Zerá. Nossa linhagem de homens e mulheres lindas cessou quando Zacur nasceu, esse rosto considerado perfeito aos vossos olhos deturpados, esse rosto supostamente divino, na verdade é anômalo. Meu pai Zerá conhecedor do valor que damos a aparência, sabia que o opróbrio abateria o reino caso ele vos apresentasse essa aberração como rainha. Daí então ele mandou quebrar todos os espelhos existentes na aldeia e exilou todos que já tinham um referencial de beleza para não julgarem as feições de Zacur, por isso o rei deixou somente as crianças de 3 anos para baixo e os cegos. Depois ele novamente espalhou espelhos esféricos por todas as ruas para que toda uma nova geração se visse com as caras tortas e não estranhassem Zacur, afirmou ainda que ela seria a única poupada por Lemuenu, para assim justificar sua cara torta. Ou seja, o que vós observais nos espelhos ditos sagrados não é a vossa imagem real, e sim o que veem no rosto dos vossos semelhantes, esses traços sim, são esplendorosos como os dos nossos ancestrais, não uma maldição. E eu posso provar, pois guardei comigo esse grande caco de espelho plano, vejam como vós sois de fato. Ambú então desceu do camarote real e deixou que todo o povo que o ouvia atônito se visse, ao se depararem com suas verdadeiras imagens protestaram: Ambú é portador do espelho amaldiçoado, que nos faz parecer com essas caras retas horrendas, apedrejem-no, apedrejem-no! Zacur foi morto diante da rainha Zacur, sem que ela esboçasse nenhuma reação para salvá-lo. Assim perpetuou-se esse padrão de beleza.