A Cadeira e a Escrivaninha.

A Cadeira e a Escrivaninha

Gama Gantois

O sol de verão já ia alto quando três homens robustos e bem dispostos entraram na loja de móveis usados e começaram a carregar o caminhão de entrega. Lá no fundo da loja, na parte mais úmida e escura, uma escrivaninha bem antiga conversava animadamente com uma cadeira, aristocrata do tempo do Império. Dizia esta:

- Bem, amiga, chegou o momento da nossa separação. Durante anos fizemos companhia uma para outra e foi muito bom. Cresci em conhecimento e em sabedoria graças aos seus ensinamentos e a sua grande experiência na arte de viver. Você me ensinou a ver a vida por um ângulo desconhecido. Tornei-me melhor, menos crítica, menos ácida, mais piedosa e muito mais compreensiva. Mas tinha receio de continuar nesse lugar lúgubre, melancólico, onde poderia contrair uma doença fatal. Imagine eu, uma cadeira nobre, ilustre, fidalga com presença constante e obrigatória nas festas imperiais, de repente contrair uma doença comum do populacho. Isto seria indigno de uma cadeira da minha tradição, do meu porte e da minha importância social. Minha amiga, como você sabe, tive o prazer e a honra de amparar as regiões glúteas mais distintas da nobreza brasileira. Descansaram sobre o meu colo as nádegas de barão, conde e até do Imperador. Isto, sem falar nas senhoras elegantemente trajadas que repousavam suas protuberâncias no meu assento. Ah! Eram dias de glória, de luxo e de sonhos.

- Olha minha amiga, desculpe a minha franqueza e a minha rudeza, mas no meu entendimento, bunda é bunda, seja ela nobre ou não, tenha ou não o apelido sofisticado pelo qual você a chama, é tudo igual. Não adianta você intelectualizar a conversa. Nádegas, protuberâncias e outros que tais, para mim são a mesma coisa. O nome disto tudo é bunda. Por isto, digo e repito. Bunda é bunda e todas têm a mesma finalidade. Não muda nunca. Não existem diferencias.

-Mas, não é não. Neste ponto você está enganada. As nádegas da nobreza são diferentes, têm charme, são cheirosas, perfumadas. Os nobres são elegantes, sentam-se com educação, “finesse”.

-Espera aí, amiga. Onde já se viu bundas cheirosas e perfumadas? Só na sua imaginação. Volto a dizer: Bunda é bunda e tem uma finalidade específica. Aliás, duas.

-Mais uma vez você está enganada. Eu posso dizer, com licença do trocadilho, de cadeira, pois tenho larga experiência sobre este assunto. Nem todas as nádegas são iguais. Existem diferenças fundamentais. Por exemplo, as nádegas republicanas são horrorosas. Quando veio a República, essa gentinha fez em cima do meu assento, coisas terríveis. Esses republicanos não sabem sentar-se, não têm compostura e muito menos educação. Espalham suas protuberâncias de qualquer maneira. Falta-lhes classe, berço, você me entende? È com dizia o velho e bom Machado de Assis: “A plebe ignara”.

-Continuo afirmando. Bunda é bunda, seja monárquica ou republicana. Bunda rica ou bunda pobre. Não importa. Ela só serve para duas finalidades

-Chega minha senhora. Não continue, por favor. Não macule meus ouvidos com palavras chulas, eu lhe peço. Minha educação não permite ouvir tais vocábulos. Uma cadeira da minha classe está acima dessas coisas mundanas. Como já é do seu conhecimento, sou uma cadeira francesa legítima. Nasci em Paris, vendo o reflexo da lua sobre o rio Sena. Pertenci a um influente barão da monarquia francesa. O destino me trouxe para o Brasil, para servir a nobreza brasileira. Freqüentei a mais alta roda da aristocracia brasileira. Não havia uma única festa, ou uma reunião importante que lá não estivesse eu, magnífica, soberba, imponente. Além disso, tenho uma educação superior. Falo francês e o português fluentemente. Sou versada em Filosofia e em História e é exatamente por isso, que lhe peço um pouco de recato. Bem, mas agora chega de falar sobre mim. Falemos um pouco da sua vida, dos seus sentimentos. Afinal quem è você? Como foi a sua vida? Como chegou a este depósito imundo? Gostaria muito de conhecer o seu passado. Por que não exterioriza as suas emoções? Por que nunca fala das suas vitórias, das suas frustrações? A final, quem roubou o seu coração? Quem foi o responsável por colocar em você tamanha tristeza? Será que vou partir desconhecendo o passado da minha única amiga? Abra a sua alma, deixe-me ler o livro da sua vida. Às vezes, é muito bom colocarmos as nossas mágoas, os nossos dissabores, os nossos desenganos para fora. Uma catarse é sempre benéfica. Confie na sua amiga de muitos anos de prisão.

-Você tem razão. Talvez um papo aberto e franco, quem sabe, não me fará um grande bem, afinal de vez em quando a gente precisa desabafar. Bem, comecemos pelo começo como diria um grande amigo meu jocosamente. Minha vida foi bastante diferente da sua. Mas não reclamo, pois fui muito feliz. Fui sim. Mas a felicidade é efêmera, enquanto a solidão e a saudade não têm fim, são eternas. Não nasci em berço de ouro nem no estrangeiro, como você. Nasci aqui mesmo no Brasil e minha educação não foi lá grande coisa, mas a escola da vida, a única que freqüentei, me ensinou o suficiente para viver regularmente. Como já disse, não reclamo.

Logo após o meu nascimento fui adquirida por um grande médico por profissão e poeta por vocação. Seu nome é um segredo meu que jurei jamais revelar. Foram os anos mais felizes da minha vida. Assisti de perto toda a sua bela trajetória profissional. Acompanhei toda sua luta, constante e incessante, para vencer a morte. Seu semblante resplandecia de felicidade, seus olhos ficavam iluminados quando vencia a doença. Mas quando era derrotado, seu olhar tornava-se triste e seu rosto se fechava numa imensa melancolia. Muitas vezes o vi chorar copiosamente. Era um pranto de impotência diante de uma realidade cruel. Minha amiga eu lhe asseguro: Quando um médico é sensível, humano, piedoso ele sofre um pedaço. Vê essa marca, aqui no meu canto esquerdo? Foi um pranto dele derramado quando perdeu um menino, portador de uma doença incurável. Naquele dia choramos juntos. Foi tanta tristeza, tanta lágrima que resolvi guardá-la no fundo do meu coração, para eternizar aquele instante, doloroso na vida de um profissional bom, sensível e humano.

Suas fórmulas miraculosas eram escritas sobre mim. Aprendi muito sobre medicina dessa forma. Mas, o momento mais edificante, mais belo, era quando escrevia seus poemas. Assisti ao nascimento dos mais lindos sonetos de amor. Era tão bom médico quanto poeta. Creio mesmo, que alguns dos seus sonetos foram feitos para mim e tinham o endereço da minha alma. Eu o amei muito. Foi meu único amor na vida. Depois dele jamais amei a outra pessoa.

Quando ele morreu, a vida perdeu o sentido. Se pudesse teria morrido em seu lugar. A vida perdeu a beleza e o encanto. O mundo tornou-se triste, feio, cinzento totalmente desbotado. Não havia mais um lindo pôr- de- sol, ou um céu estrelado emoldurado por um magnífico luar. Perdi o prazer de viver. Muitas vezes pedi a Deus para morrer também. Pensei várias vezes em suicídio, mas não consegui encontrar uma maneira capaz de realizar o meu desejo. Não sei precisar por quanto tempo fiquei trancada e esquecida naquele lugar sem luz e calor. Foram anos de recolhimento, solidão e de saudade. Não havia um minuto sequer na minha triste existência que não recordasse os momentos vividos com o meu médico-poeta. Ficava sonhando com o seu sorriso, com o seu olhar amoroso, com a sua mão acarinhando meu corpo. Certo dia fui vendida. Você não pode imaginar a minha dor. Ser obrigada a deixar o lugar onde fui muito feliz. Aquele espaço só me trazia doces lembranças. Ali eu podia curtir a minha saudade, pois, tinha criado com as minhas recordações somadas a minha imensa saudade, um mundo de sonho e fantasia, onde certamente não havia lágrimas, mortes ou doenças. Neste meu mundo só havia ventura, muito amor e a felicidade de um final feliz. Foi esta a maneira que encontrei para suportar a dor da ausência do meu amado. No dia da minha despedida, daquele consultório, chorei tanto que as minhas lágrimas secaram.

Meu novo dono era um velho comerciante, avarento, rabugento que só pensava em lucro fácil, em ganhar muito dinheiro. Que diferença, minha amiga, que diferença! Em vez de fórmulas salvadoras, das mais lindas poesias, dos momentos de enlevo e de êxtase, aquele homem só sabia escrever sobre números. Era só débito e crédito, principalmente sobre esse último. Em matéria de dinheiro, era duro e inflexível. Só sabia aumentar os preços para obter maiores lucros. Além do mais, emprestava dinheiro a juros exorbitantes. Vi muitas pessoas entregarem seus bens, em troca da quitação da dívida. Aquele velho era um sovina. Um agiota asqueroso. Nada o comovia. Não tinha alma e muito menos coração. Um horror. Foram os piores anos da minha vida.

Um dia, o usurário faleceu. Senti-me aliviada. Seu herdeiro, um sobrinho sem escrúpulos e também ávido por dinheiro, acabou me vendendo para esse depósito de móveis usados. A princípio tive esperanças de ser adquirida, por uma pessoa ligada às artes. Uma pessoa do bem. Quem sabe um novo poeta? Ou um artista de grande sensibilidade? Que nada. Cada dia vivido era uma esperança a menos. O tempo foi passando e ninguém se interessava por mim. Hoje em dia, a preferência é para essas escrivaninhas modernas. Dizem que são mais leves mais funcionais e não ocupam muito espaço. Não dão valor a uma peça da minha categoria, da minha classe, com a minha história. Ninguém quer uma obra feita do mais legítimo jacarandá, toda entalhada, maciça e ao estilo colonial. Acredito que meu destino já esteja traçado. Depois, de tanta luta tanta emoção, tanto amor, tantos sonhos, morrer esquecida, no fundo de um depósito de quinta categoria.

- Não diga isso, minha amiga. Há de aparecer alguém de gosto requintado para adquiri-la. Você ainda vai luzir num ambiente de altíssimo nível. Quem sabe um gabinete de um novo médico-poeta, como é do seu desejo? Ou numa residência de um grande artista? Talvez um músico, ou um escultor, ou quem sabe, um pintor? Alguém de alta sensibilidade. Seus dias de glória e de fausto hão de voltar mais cedo do que pensa. `È só ter fé. Veja o meu caso. Estava aqui há muito tempo. Não tinha mais esperanças de sair desta espelunca e voltar para os grandes salões. Participar dos momentos festivos e gloriosos como nos velhos tempos. Finalmente, o grande dia chegou. A sorte me sorriu. Vou emprestar a minha beleza, meu charme, a minha classe num majestoso sítio. Será uma experiência nova, já que sempre fui urbana. Mas nada deve ser pior do que isto aqui. A vida no interior não deve ser tão ruim, apesar dos mosquitos, aves, mato em abundância e outras coisas mais. O interior tem seus encantos. Tem o ar puro. A vida calma e pacata. A mesa farta e saudável. Afinal, não estou mais na idade de escolher meu dono, pois sou uma senhora com mais de 150 anos. Preciso sentir o aroma da terra molhada pela chuva, do orvalho beijando as flores, do amanhecer sempre esplendoroso e belo do campo, do sol amarelo e redondo aquecendo a terra nas manhãs de frio, ouvir um lundu, uma marchinha ou mesmo uma valsa vienense.

-Não exagere!

- Bem, amiga, está chegando à hora da nossa despedida. Mas antes que eu parta, gostaria de lhe dizer duas coisas: A primeira é que depois de conhecer a sua história de vida, devo confessar que estou morrendo de inveja.

- Inveja de mim? Por quê?

- Porque pelo menos você foi amada. Teve o seu momento de felicidade. Conheceu o amor, a esperança, teve emoções. Quanto a mim, fiquei no alto do meu pedestal, achando que ninguém estava a minha altura. Que a minha superioridade era imensurável. Que ninguém merecia o meu coração, a minha alma e por causa deste orgulho tolo não amei e muito menos fui amada. Vou morrer desconhecendo esse sentimento nobre: O amor. Hoje percebo a minha grande bobagem. A vida passou e eu não vivi. Envelheci, sem perceber que estava velha e acabada. Agora é tarde para amar. Infelizmente ninguém volta ao passado, simplesmente vivemos dele. Hoje tardiamente, aprendi que o verdadeiro amor desconhece os preconceitos sociais, raciais e outras tolices. Na verdade, existe apenas um sentimento capaz de embalar as nossas vidas, de gerar sonhos, de tornar a nossa existência mais colorida mais amena, mais agradável. Este sentimento é o amor. Aprendi com sofrimento que o verdadeiro amor é aquele que dura para sempre. Se ele acaba é porque não era verdadeiro. Ou se ama para sempre ou nunca se amou. E o seu, minha cara amiga, é verdadeiro, porque é eterno. Transcende ao tempo. Não findará jamais, nem na eternidade. Continuará a existir mesmo depois da morte. Daí a minha inveja.

A segunda coisa que gostaria de lhe falar é que tive um imenso prazer de conhecê-la. .De ser sua amiga e agora confidente.

- O prazer foi meu.

- Bem, os homens estão chegando. Adeus.

-Adeus.

A cadeira foi parar num sítio bem modesto muito aquém da sua classe e da sua categoria. Seus novos donos eram pessoas rudes, sem nenhuma intimidade com a cultura, muito menos com a arte. Por isso, em vez de ser colocada num lugar de destaque na sala, foi colocada na varanda, como uma cadeira qualquer, exposta a intempérie da natureza. Em pouco tempo agonizava. Para piorar a sua situação era constantemente torturada pela criançada da casa. Em pouco tempo teve seus braços arrancados, o verniz manchado e o estofamento rasgado. Viveu seu último momento de vida, recordando sua estada no depósito e dos papos intelectuais com a sua amiga escrivaninha.

Ela era feliz e não sabia. Um dia exalou seu último suspiro. Foi para o céu das cadeiras. Lá certamente, vive feliz, rodeada de luxo e riqueza onde depois de ser recuperada, com certeza está amparando as bundas mais ilustres da eternidade na maior felicidade.

Quanto à velha e aristocrática escrivaninha, continuou esquecida lá nos fundos da loja, na parte mais úmida do velho depósito, cercada pelo de mofo. Os malditos cupins começaram a surgir vorazes e, em pouco tempo, destruíram aquela bela antiguidade. Sua morte foi muito dolorosa. No dia fatal, quando a sua agonia era maior, para sua surpresa, ela se reencontrou com o seu médico-poeta, razão maior de toda a sua vida. Depois de trocarem um longo beijo de amor, caminharam para a eternidade. Nunca se viu uma escrivaninha tão feliz!

Creiam todos aqueles que por acaso tenham lido esta história:

A felicidade dura apenas um instante, mas mesmo assim vale à pena lutar por ela se pudermos eternizá-la em nossos corações.

Gama gantois
Enviado por Gama gantois em 28/10/2015
Reeditado em 29/01/2016
Código do texto: T5430334
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