A ELEGIA DA PRIMAVERA

A manhã, espreguiçadeira, debruça seus braços solares sobre a relva úmida. É primavera, e as coisas faceiras, acontecem desde o raiar do dia, as vezes, até antes.

O pequeno pássaro, coloca o bico a fora do ninho, construindo com muito capricho por entre as telhas da gaiola humana, a procura de uma expectativa de café da manhã. Esse ninho é um projeto antigo, que espera para sua conclusão, apenas um item: uma companheira. Aquela que trará esperança a sua vida tão solitária.

Ele se esgueira por entre as telhas e alça voo a procura de comida. Acha, mais adiante, alguns insetos matutinos que irão compor seu rápido break fest. na volta, pensando na agenda para as próximas horas: alguns gravetos para aprimorar sua morada, outras opções de cardápio, já pensando no almoço e, a principal, a busca, incessante por sua amada.

e ele estava lá, perdido em sua prioridades, quando, de repente, ouve um canto, rápido e único, quase como um suplicio ou um chamado. havido mas também tênue. forte mas contudo, suave. Procurou a origem de tal sibilo e não encontrou. voou pelas redondezas, atrás das casas, por entre as árvores próximas e nada.

"O que era aquele cântico? de quem? de onde?" era uma agonia que começava a crescer em seu peito pequenino.

Passou praticamente o dia inteiro ao encalço do dono (ou dona) daquela melodia, em vão. a a tardinha já caia e a noite insinuava se no horizonte. desolado, o silvestre alado, desencantado, retornava a casa, de sua busca interminável.

Talvez fosse algum devaneio de um ermitão cansado, pensou ele, desolado. fez mais algumas manobras para pouso, quando novamente, o canto se fez presente. rápido e forte, mas languido e insinuante.

"de onde? ali? não. de lá? não. oh senhor dos pássaros, me ajude!" onde esta a bendita garganta que emite tal lira?

repentinamente o canto se repetiu e desta vez ele viu de onde vinha, mas não entendeu. era uma gaiola grande de aço e vidro. estranha. e dentro dela , na porta, ou algo que assim se parecia, um humano inclinava a dentro, meio corpo, como se a procurar algo.

seria essa criatura tão imunda e descuidada autora da ode angelical? já ouvira algumas obras destes seres e , algumas até eram belas, apesar de muitas vezes , confusas e outras, horrorosas. mas não, nunca poderiam tecer tal sinfonia, mesmo que curta, pensou ele. não tinham espirito nem coração para tal obra. que insanidade é esta, bradava sua alma já tão aturdida. mas, do fundo de seu globo ocular. da visão única dos pássaros, dadiva dos deuses alados, uma imagem, inicialmente não muito nítida, mas que aos poucos tomava forma, revelou, finalmente, a criatura criadora da ode. um pequeno pássaro dentro da gaiola sinistra, dependurado em um estranho poleiro.

de uma cor pálida, amarela suave, bailava a pequenina formosura, agora muda. olhar parado e triste, como se suplicasse ajuda. ele apaixonou-se de imediato. nem sabia ao certo se era fêmea. mas seu antro dizia, que... sim. era sua amada. mas estava presa. enclausurada por aquela besta fera em sua masmorra horrenda. Tinha que fazer algo, alguma coisa. esta seria sua missão, talvez, derradeira missão.

voou rasante perto do humano, que a principio estranhou tal atitude da ave, mas depois, indiferente, lacrou a morada funesta e encerrou sua bela naquele calabouço maldito.

por horas rondou a espreita de alguma entrada, mesmo que pequena, mas nada.

até que o cansaço o fez retornar ao seu ninho. chorou, se é que os pássaros choram. amaldiçoou sua pequena estatura e força minúscula. mas em seu peito, uma chama ardia e não ia se apagar facilmente. forjou um plano que colocaria em pratica na manhã seguinte. despediu-se de sua amada, pousando levemente na parede de vidro que circundava a gaiola e falou em um passares só conhecido pelos amantes. " querida, querida, não se aflija. jamais desistirei de você, nem que leve toda a minha vida tentando te libertar."

retornou mais uma vez ao ninho, e dormiu, vencido pelo cansaço da batalha.

Na manhã seguinte, lá estava ele, de pé, ou melhor, de asas ao vento, prestes efetuar seu plano. voou em volta da jaula e certeiramente... vupt, lançou seu torpedo de fezes na parede cristalina. splat! esparramou merda em todo o vidro. e novamente , novamente, novamente. até que suas entranhas quase saíssem por seu anus. já não tinha mais nada que seus intestinos pudessem fabricar. mas alcançou seu objetivo. a câmara de torturas estava toda enlameada. quase não via sua amada. de repente viu o humano sair de seu grande ninho e estupefato, urrou de raiva. ele gargalhou, como se fosse possível. ou algo parecido com gargalhada. era seu cântico de vitória.

o humano pegou uma espécie de corda ou algum fio gordo e comprido que inadvertidamente, jorrou agua sobre a gaiola. mas as fezes eram duras, já ao sol da manhã. custou a sair e não saiu tudo.

não adianta, criatura. podes limpar minhas fezes mas irei cagar e cagar, até que solte minha princesa, ou morrerei seco.

o cântico veio nesta hora, como se em resposta a sua vitória. era sua amada, que bradava num rápido e envolvente sibilo.

"não temas minha dama, ainda iremos viver nossa historia de amor".

E assim foi, por dias, semanas, meses. nem se sabe quanto tempo. pois este, entre os animais e em especial, os pássaros, é medido de forma diferente dos humanos.

era quando o sol surgia, a merdança recomeçava, até o humano levar a jaula para longe. algum lugar que ele desconhecia e não conseguia acompanhar; era no final da tarde, quando voltava com sua amada enjaulada, e retomava liturgia escremental.

foram entre bostas em vidros e urros de ódio, que a quimera do tempo, estendeu seu manto.

Já esvaísse em coco e sangue, em suas tentativas muitas, quando em um final de tarde, quando da espera do retorno de sua rainha, viu o homem voltar caminhando, sem a jaula.

apavorou-se.

o que ele fizera com seu amor ? levou-a onde? entregou a algum outro humano vil? encarcerou em alguma outra masmorra sangrenta? matou-a?

gritou ao vento, seu canto mais profundo e triste. fora tão agoniante seu canto de dor que até o humano se admirou. mas sabem, todos outros eres vivos, que a monotonia humana sempre cega seus sentidos e eles apenas esboçam algum espanto, e retornam a sua insignificante existência.

um ódio cresceu em seu peito. alçou um ultimo voo de vingança e jorrou suas ultimas fezes misturadas com entranhas. estatelou-se no chão, moribundo. na ultima lagrima agonizante, a desilusão de uma vida entregue a sua única paixão. morreu. sem ninguém pra lamentar seu átimo fatal. o corpo ali, plumoso e frio, ao relento. possivelmente a ser devorado pro algum gato de rua ou ratazana de esgoto. coisas da natureza que aos olhos humanos, não compete julgamento.

o homem? coçou a cabeça, ouviu uma musica de seu bolso, atendeu seu telefone. virou de costa e enterrou-se em sua morada fria.

na manhã seguinte, que houve, pois como foi dito, são coisas da natureza, outro pássaro adonou se do ninho do falecido enamorado. arrumou com mais alguns galhos, para personalizar e alçou voo pela celeste matutina, quando o humano de outrora, estaciona seu veiculo cintilante, cheirando a novo, na frente da casa, e... aquele cântico de novo, mais vibrante e diferente de tudo. o alado recém decolado, detém-se no ar a indagar-se; que cântico é esse? de que pássaro?

Ita poeta
Enviado por Ita poeta em 22/10/2015
Código do texto: T5423004
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