O Andarilho - Contos de Fadas para Adultos
Contos de Fadas para Adultos
O Andarilho
Na Vila das Brumas todos esperavam ansiosamente pelo final de outubro, quando o outono se jogava sobre as montanhas, queimando a grama e amarelando as folhas, desnudando as árvores e gelando as lagoas. É que, nesta época, sempre aparecia pela trilha da floresta o andarilho, um homem misterioso vestido de vermelho, não era possível conversar com ele, pois o rio inundava de maneira feroz os arredores da trilha sempre que o sujeito dava as caras, e ninguém conseguia atravessar para ir tê-lo. Mas, de longe, todos tinham o poder de avistá-lo, envolto em seu manto sangrento, agachar-se com rigidez para colher os presentes deixados entre os troncos açoitados pela estação. Desde cedo as histórias sobre o andarilho eram contadas às pessoas, todos sabiam que, se deixassem comida e vestimentas ao senhor misterioso, seus desejos seriam atendidos, e eles deveriam repetir o agrado todos os anos, para que o desejo se mantivesse realizado. Porém, bem sabiam os monges da vila, trabalhar com almejos era uma arte perigosa, por isso nada de extravagante devia ser solicitado.
Uns diziam que o andarilho era um deus, outros um anjos, alguns um mago, e havia quem jurasse ser ele um demônio.
Fosse como fosse, todo outubro as casas eram pintadas de vermelho, velas incandesciam nas ruas e todos se vestiam com capuzes em rubro para receber o senhor enigmático.
Naquele ano em que a história se passa, Fátima, a senhora dos pescadores, esposa do pescador chefe da vila e mãe de três pequenos pimpolhos, tinha um pedido especial a fazer: seu marido, Rubens, se fora ao mar para a pescaria rotineira e jamais voltara. O mar ficava longe, mas a saudade da senhora dos pescadores lhe apunhalava tão perto que podia senti-la gelar as vértebras. Como haveria de criar os três pequenos filhos afogada em solidão? E o seu amor por Rubens a fazia querer se jogar ao mar para procurá-lo. Os monges lhe advertiram que pedir pelo regresso do esposo pescador era perigoso, mesmo assim ela, antes do rio subir, depositou mantimentos para o andarilho e pediu pelo marido.
O mago, demônio, anjo, ou como fosse, passou na noite do fim de outubro e levou os pertences em sua carruagem de cavalos negros, e todos o saudaram com alegria e calor. Uma semana após sua passagem, Fátima já desolada e raivosa por não ter o marido de volta, viu irromper pela porta Rubens, magro e doente; ela correu aos seus braços e toda a vila assou carne de porco para festejar a volta do pescador, que não mais podia exercer suas funções laborais por estar severamente assolado pela desnutrição. Logo Fátima se aventurou na lavoura e eles passaram a viver dos vegetais, o negócio prosperou e eles foram assolados por uma vida feliz e farta, mesmo Rubens tendo a doença asseverada. Todos os anos sua esposa depositava os mantimentos ao andarilho.
Mas...
O tempo passou depressa. O mundo estava mudando e a magia morrendo. Logo os mais novos não acreditavam tanto nos poderes do andarilho, a igreja entrou com força na vila e demonizou o senhor dos desejos, muitos deixaram de solicitá-lo e com o tempo a festa para recebê-lo se dispersou nas ruínas dos dias e meses e anos.
Fátima passou a viver para o trabalho e para o marido, eles faziam muitas festas por conta da comida farta, mas infelizmente a doença de Rubens começou a piorar de forma estranha, nem mesmo os monges foram capazes de curá-lo. O homem, que há muito tinha sido conhecido pelas artes pesqueiras, passou a regurgitar água salgada e pequenos crustáceos, sua pele tornou-se escamosa, ele diminuía sua estatura a cada dia corrido. Ninguém sabia o que estava acontecendo com ele. Quanto mais o problema se agravava, mais o ar lhe era pouco. Rubens descobriu, durante um banho, que ficar debaixo da água fazia o ar voltar, não tardou e ele passou a viver na banheira.
Passaram-se os dias. Ele criou barbatanas. Seus olhos se tornaram fixos e vazios como o vidro. Rubens alarmava-se a cada toque de sua mulher. Certa manhã Fátima foi levar-lhe comida e depois da visita não parou mais de chorar. Algo horrível tinha acontecido, mas a senhora dos pescadores não teve coragem de falar o que sucedera, e quando a vila foi conferir o adoentado, constatou que ele tinha se tornado um peixe.
Por algum tempo ele viveu no tanque da vila, mas ali era pequeno e apertado, e a água doce passava a ser insuficiente cada vez mais para a sua respiração, até o momento em que Fátima, relutante contra suas próprias emoções, decidiu levar o marido para o mar e lá deixá-lo para que pudesse viver no oceano.
... ... ...
Outubro chegou. O rio já não se enfurecia no final deste mês. Fátima, muito entristecida, resolveu caminhar pela floresta à noite, ela resolveu que iria pendurar uma corda em qualquer árvore que julgasse conveniente e iria se enforcar. Não tinha sentido viver sem Rubens. Não entendia por que ele tinha virado um peixe e como isso podia acontecer com alguém. Fora tão injustiçada...
Muito transtornada, ela ajeitou a corda e preparou-se para morrer, foi quando ali perto, na trilha, passou um homem solitário, tão entristecido quanto ela. Ele não parou, não havia nada para ele ali. Logo Fátima o reconheceu peal capa sangrenta, se tratava do andarilho. Por muitos anos, cegada pela fartura e pelas novas filosofias, Fátima esqueceu-se completamente que muito devia a um ser ancestral, de crenças antigas e primordiais, tinha uma dívida eterna com um deus, mas trocou-o por outro, e não mais lhe depositou na relva os presentes devidos. Ninguém fora castigado ou injustiçado, o desejo simplesmente se desfez.
Aquela foi a última vez que o andarilho apareceu.