A assembléia dos ratos
Em uma vila distante, muito além da imaginação humana, ocorreu um evento no mínimo curioso, presenciado por esta sombra, este espectro translúcido que vos escreve, vossas senhorias. Ainda não cabe aqui, no presente momento, no presente conto, revelar minha identidade. Cabe, porém, esmiuçar o estranho caso testemunhado por estes olhos vívidos e curiosos. E para não mais me aproveitar da paciência do caro leitor, serei breve, caminhando direto ao ponto.
Tudo começou com um saco de arroz roído, em um celeiro semi-abandonado. O tal saco, como bem pensamos, fora roído por um ordinário rato, se assim posso dizer. O fazendeiro, dono do saco roído, logo ficou alarmado ao encontrar seu produto deteriorado, temendo uma praga de ratos se alastrando pela sua propriedade. Armou então uma dúzia de pequenas armadilhas, ratoeiras com peças de queijo para atrair o vilão ao seu merecido castigo. Na manhã seguinte, ao acordar, deslocou-se até o celeiro certo que encontraria um cadáver in rigor mortis de roedor preso em uma das terríveis armadilhas, dando fim as suas preocupações. Para a surpresa do fazendeiro, todas as armadilhas estavam desarmadas e todas as peças de queijo haviam sumido! Por três noites seguidas o homem tentou se livrar do rato, por meio das ratoeiras e por três noites obteve o mesmo frustrante resultado. Na quarta noite decidiu reunir os fazendeiros da vizinhança para discutir o problema. Na reunião foi descoberto que a situação de nosso amigo não era particular; todos nas redondezas passavam pelo mesmo problema e parecia que nenhuma solução resolveria essa situação. Foi então que um dos homens, um senhor de barba grisalha e olhos afundados em uns óculos tão antigos quanto seus encardidos sapatos, recordou-se de ter ouvido algo sobre um astuto lenhador, hábil nas artes do extermínio de pragas, que poderia ser útil nessa tarefa. No dia seguinte, todos os fazendeiros decidiram entrar em contato com o tal lenhador, batendo à porta de um senhor ruivo de rosto recém barbeado, com pequenas sarnas espalhadas pela face larga de cavalo. O cheiro forte de loção pós-barba entregava que acabara de ter raspado os pêlos da cara. Após uma breve explicação do ocorrido, o lenhador logo aceitou o trabalho, em troca não de dinheiro, mas sim de suprimentos alimentícios por um ano, de cada cliente seu, alternadamente, garantindo assim cinco anos de comida fácil. O lenhador carregava sempre consigo uma flauta velha, de cor dourada como o sol que refletia de forma exuberante grande parte da luz que a atingia. Ao ser questionado sobre aquele exótico instrumento, avisou que ele se tratava de uma ferramenta de trabalho, pois sua música facilitava seu serviço podendo acalmar ou confundir suas vítimas de acordo com as notas e músicas que fossem tocadas.
Após reunir seus instrumentos de trabalho, sobretudo sua flauta, o lenhador partiu para as fazendas de seus clientes, investigando cada centímetro de seus territórios, fuçando, cheirando, lambendo vestígios, roendo grãos de arroz roídos, procurando vestígios nas ratoeiras já desarmadas, investigando as pequenas pegadas na lama e os mínimos resquícios que pudessem lhe apontar alguma direção nesse misterioso caso. Por dias procurou evidências, passando por noites mal dormidas e enfadonhas, varando tocaias noite à dentro, para no fim se dar conta que seus esforços foram em vão; nenhum rato aparecera. Entretanto como explicar suas armadilhas sendo desarmadas sem nenhum barulho na calada da noite? No fim de outra longa vigília, decidiu tocar levemente sua flauta enquanto mantia guarda no primeiro celeiro onde o primeiro saco de arroz roído fora encontrado. Em meio ao feno amontoado e às sombras tremules da noite dançando contra a luz fraca do candeeiro de mesa, viu algo se mexer. De imediato parou de tocar, dando-se conta que os movimentos também desistiam, como se estivessem seguindo o som da sua música. Ao continuar com a música, pôde notar a sombra antes avistada tomando forma e se aproximando, saltitando timidamente, parando vez ou outra para coçar os longos bigodes com as patas dianteiras. Sim amigos, era um pequenino e tímido rato, de pelo cinza escuro e olhos negros esbugalhados. O rato realmente parecia seguir o som da música, aproximando-se cada vez mais do lenhador, vagarosamente. Ao chegar a um braço de distância, o lenhador calmamente puxou um porrete de sua maleta, enquanto que com sua outra mão sustentava uma única nota repetida em sua flauta. Ergueu assim a arma acima da cabeça e no memento em que desferiria o golpe surdo e mortal contra o pobre animal hipnotizado, escutou, para sua surpresa, o roedor falar. Exato! E falou com muita eloquência e vivência, devo dizer.
- Ei! Aposto que o pessoal iria adorar essa música no conselho! Disse com voz melodiosa e estranhamente perturbante.
O lenhador, pasmo, deixou a pequena clava soltar-se de sua mão, enquanto permanecia incrédulo e boquiaberto com o que acabava de testemunhar.
- Você fala? Perguntou atônito.
- Falo, penso, danço, canto. E devo dizer que sua música é muito boa. A maneira como usas as escalas é genial!
- Bem, se eu não estivesse pasmo o suficiente, poderia até agradecer. Falou o lenhador ainda confuso com a situação.
- Hum... gostaria muito de convidar-lhe, senhor, para trocarmos informações e experiências nesse delicado e comovente tema que é a música. Porém nestas terras distantes que agora nos encontramos meu tempo de fala é escasso e precioso. Porque não me acompanha até minha terra natal para podermos conversar com calma? Disse o pequeno rato calmamente, roendo um pequeno pedaço de queijo que havia guardado anteriormente nas bochechas.
- Se isso lhe parece normal... porque não? Respondeu o lenhador com ares de quem se imagina em uma atmosfera onírica (ou esquizofrênica).
- Então caminhemos; o sol não tarda muito a nascer. E enquanto o fazemos toque algo alegre e contagiante, por favor. Falou o rato com tom respeitoso.
Assim os dois estranhos companheiros puseram-se em marcha por um caminho de mata inexplorada, passando por florestas fechadas e densas, caminhos que o ingênuo lenhador nunca poderia imaginar que existissem na virgindade das brenhas. Até mesmo o tempo era difícil de se calcular; parecia ele mesmo seguir o tortuoso caminho que percorriam, brotando das inúmeras nascentes de movimentos lentos como um dia de preguiça, acelerando e diminuindo como a correnteza instável dos rios que ora ou outra contornavam o percurso. Caminharam até uma clareira no meio da mata onde pararam e esperaram. A música cessou. Os sons da floresta aos poucos diminuíram, enquanto ao longe era possível notar uma pequena mas crescente onda de patas pequeninas e apressadas.
- Vamos! Toque algo mais agitado para animar meus companheiros, disse o ratinho empolgado.
Atendendo ao pedido de seu estranho admirador, o lenhador iniciou uma canção acompanhando a crescente marcha de ratos que começava a aparecer. Muitos deles apareciam preguiçosos e à medida que a canção se tornava mais alta e rápida, desperatavam e se colocavam a trabalhar com mais vividez. Os ratos traziam pedras quadradas da mata, de vários tamanhos, organizando-as ao redor da clareira, empilhando-as, espalhando-as em um círculo que compreendia todo o espaço do ambiente. Mordiam, coçavam, arrastavam, puxavam, beliscavam. No auge da canção e a todo vapor, o lenhador contemplou a formação completa de uma arquibancada fabulosa. No meio três palanques onde três ratos velhos e imponentes permaneciam parados, observando friamente a finalização da obra, como se ja estivessem acostumados a presenciar aquela cena. Em um piscar de olhos a obra ficou pronta e tomou uma proporção impossível de se imaginar, como se não tivesse sido construída por criaturas tão pequenas e aparentemente frágeis. Contemplando a construção, o lenhador não se deu conta que tinha parado a música e que, no meio do colossal ginásio aberto, permanecia em pé, sendo silenciosamente observado por incontáveis olhinhos perscrutadores. Olhou ao seu redor e temeu por sua segurança, sem saber o que fazer. E na verdade, antes de pensar em fazer qualquer coisa, sentiu um puxão em seu pé e viu o pequenino rato que o trouxera até ali lutando para chamar sua atenção.
- Vamos, o que você está fazendo? Já vai começar! Vamos procurar um lugar para sentar.
Caminharam até os assentos da arquibancada, os passos do lenhador ecoando abafados pelo piso de terra batida. A distância parecia gigante.
- Lá em cima - apontou o ratinho para os dois lugares vagos na multidão, enquanto todos os olhos negros do ambiente permaneciam fixos nas duas figuras escalando a arquibancada. Ao sentar escutaram um pigarro forçado que atraiu toda a atenção da clareira. Um dos três ratos no centro do ginásio se ergueu em duas patas e falou galantemente: - A sessão se inicia em cinco minutos!
O falatório tomou conta do lugar. Os ratos viravam-se uns para os outros e conversavam com vigor, como íntimos amigos que não se viam há muito tempo, fofocando e gesticulando vividamente. E o pequeno amigo do lenhador não era exceção.
- Então meu caro amigo, de onde você é? Perguntou o rato ao lenhador.
- Sou do Norte, disse encabulado.
- Quão longe ao norte?
- Bastante, respondeu secamente.
- Ah! Então com certeza você deve conhecer a famosa Rastóvia. Você é o segundo rato que conheço de lá. Fria Rastóvia!
O pequeno roedor continuo falando, descrevendo as montanhas de gelo dessa desconhecida terra que atendia pelo nome de Rastóvia, que nome mais bobo. Falava sobre o clima, as garotas sensuais, enquanto o lenhador, imerso em pensamentos, tentava descobrir se estava sonhando ou se estava acordado, se o som da sua flauta confundiu os roedores, fazendo-o se passar por um deles ou o que diabos estava acontecendo ali. Porém após alguns segundos de meditação, foi interrompido por um bater de pedras e um pedido de silêncio que vinha do centro do auditório.
- Caros amigos! Iniciamos mais uma vez nossa sessão especial de domingo para discutir um crescente problema que vem tomando conta de nosso cotidiano. As armadilhas para rato!
O auditório se encheu de barulho mais uma vez, cortado por vozes amedrontadas e frenéticas, sendo possível distinguir apenas uma palavra ou outra no oceano de frases horrificadas que quebravam como as ondas de maré cheia nas pedras do cais. E por entre a ressaca dessas ondas, era possível escutar uma voz ou outra se sobressaindo das demais, implorando por silêncio e tentando reestabelecer a ordem naquela tumultuada sessão. "É um absurdo!". "Algo deve ser feito!". "Crápulas!". O lenhador observava e à medida que as reclamações se tornavam mais altas e calorosas ele mesmo se deixou queimar por aquela chama de insatisfação dos ratos, explodindo em um grito de "isso é terrível!" que ecoou pelo ambiente como um poderoso trovão em uma noite de chuva fraca. Os ratos contemplavam aquela estranha figura gigantesca e grotesca em demasia.
- Ele não é daqui, não é? - Perguntou um rato qualquer na multidão em meio à mórbida mudez que se fazia.
- Não, ele é do norte. - Respondeu o ratinho companheiro do lenhador, depois de alguns segundos de tensão. Todos então se aliviaram, expondo expressões de "ah, ele é do norte, é por isso". Ser do norte, ainda mais de muito longe ao norte, parecia ser a solução mais sensata para todas as coisas bizarras que existiam no mundo dos roedores.
- Bem - Continuou o primeiro juíz dos três que permaneciam no centro do auditório. - Continuemos então. Eu e meus dois companheiros aqui presentes decidimos realizar a criação de uma nova lei que diz: "fica, a partir desta data, estritamente proibido a todo e qualquer fazendeiro armar armadilhas de qualquer tipo que seja, a qualquer propósito que há e em qualquer lugar que existir". É proibido ainda a menção da palavra "armadilha" em livros, textos, propagandas, trabalhos acadêmicos, jornais, folhetins e qualquer outro veículo de circulação de palavras".
Os ratos se olhavam estranhamente, curiosos entre si. Até mesmo o primeiro juíz relendo silenciosamente a lei que ele mesmo criara com seus colegas arqueava uma sobrancelha ou outra durante o processo de leitura.
- Não há algo errado nessa lei? - Perguntou um curioso na platéia.
O pequeno primeiro juíz pensava, pensava, mas não conseguia chegar há lugar algum. Decidiu então reler a lei juntamente com os demais juízes, coçando os bigodes e discutindo silenciosamente. Após aproximadamente dez minutos de conversa, o terceiro juíz pareceu encontrar o problema e sua subsequente solução. O papel foi assim rabiscado e a multidão se postou ávida para descobrir o resultado daquele pequeno debate privado.
- Senhoras e senhores - Iniciou o primeiro juíz - Creio que encontramos o problema dessa lei. "Armadilha" estava escrito errado, pois não possui duas letras "r" após o primeiro "a"! - O silêncio se rompeu em uma nova onda de alívio, sendo possível ouvir comentários como "ah, eu sabia!" e "Puxa, mas é claro!". O lenhador, embasbacado, não compreendia como o povo poderia ser tão burro. Sua indignação cresceu até o ponto que perguntou com sua voz de trovão: "E como os senhores pretendem impedir os fazendeiros de plantar as armadilhas?", silenciando mais uma vez o ambiente. Os ratos olhavam para o primeiro juíz, ainda segurando o papel com a lei escrita, agora com os olhos esbugalhados sobre as letras, tremendo com o papiro nas patas. Pouco tempo depois respondeu gaguejante: "Ah...! A-a-a-acho que essa lei precisa ser revista!". E lá foram os três ratos discutir o infame tema novamente. O lenhador olhou ao seu redor e viu que os demais ratos apenas esperavam a elucidação do caso, conversando enquanto o faziam. Falavam sobre as tragédias do dia-a-dia, aguardando (de uma certa maneira estúpida) uma revelação, um insight de seus "superiores", olhando vez ou outra para baixo, onde os mesmos se encontravam. Nesse ínterim, o lenhador não podia deixar de pensar em como as coisas no mundo dos ratos eram erradas. Talvez por isso mesmo que eles fossem ratos!
A resposta para o problema não tardou a chegar. O primeiro juíz, após um período de súplica por calmaria, bravejou: - Amigos e amigas! A resposta para esse problema não poderia ser mais clara! Ela estava bem aqui, todo esse tempo! - Disse alisando os enormes dentes incisivos. - Começando esta noite, vamos sair a todas as bibliotecas humanas, todas as bancas de revista, procuraremos em todos os lugares do mundo pela palavra "armadilha" e então a roeremos! Nenhuma bula de remédio ou letra de música escapará da fúria de nossa determinação! Não devemos mais nos preocupar com esta questão, pois ao eliminar a palavra que dá nome ao dispositivo eliminamos também o dispositivo que atende à palavra! Ninguém poderá construí-lo pois ninguém mais saberá como chamá-lo! Os fazendeiros não poderão mais comprá-lo pois não saberão o que pedir nas lojas. Não poderão armar aquilo que não sabem chamar! É genial!
Os ratos inflamaram-se de alegria e logo correram para iniciar o propósito da lei, atropelando-se escadaria abaixo, loucos, loucos, loucos. O lenhador boquiaberto, caminhava seguindo o fluxo da correnteza de ratos, tomando o maior cuidado do mundo para não pisar em nenhuma das criaturas. Ora ou outra ainda tentava pensar em como aquilo tudo era possível, na estranheza daquele evento e daquela assembléia e no que diria ao se reunir novamente com os fazendeiros. Chegando na cidade a torrente de ratos gradativamente foi se dispersando, como a água empoçada em uma pia quando é aberto o seu ralo, secando, murchando e deixando de existir. Logo se viu solitário; sobre sua cabeça apenas a luz prateada de uma lua cheia única e inesquecível. Pegou sua flauta com cuidado e caminhou para casa, pensando ainda em como eram desvairados aqueles ratos. Discutir em assembléias temas que não eram cabíveis a eles mesmos controlarem, sancionar leis sem sentido, executando-as de maneira ainda mais sem sentido. Não deixou de lembrar, entretanto, de seus clientes fazendeiros. "Os ratos devem deixar de existir, vamos contratar alguém para que essa nossa vontade seja realizada". Até que parecia um pouco com o jeito de pensar deles, não era? Ordenando, mandando como se fossem os donos de tudo. Mas já estava tarde e o lenhador muito cansado. Retornou a sua casa e debruçou-se sobre a cama, dormindo um sono que jamais havia dormido antes.
No dia seguinte, ao prestar contas aos seus clientes fazendeiros, contou-lhes detalhadamente por longos minutos o que havia ocorrido na noite anterior. Os respeitosos senhores, após ouvir pacientemente toda a elaborada história do lenhador, puseram-se a esbravejar, xingando e maldizendo do pobre homem da floresta que contava apenas a verdade. Em meio a toda aquela gritaria, o lenhador permanecia calmo e serene, como alguém que já esperava aquela reação e já possuía uma contra-ação à altura: pegou sua flauta, sua fiel companheira e iniciou assim uma estranha música que abruptamente chamou a atenção dos fazendeiros. Eles então, hipnotizados como em um inocente sonho de criança, levantaram-se do alto de suas cadeiras e seguiram o lenhador que agora já se encontrava em movimento. Após alguns minutos de encanto musical floresta adentro, depararam-se com um enorme lago de águas translúcidas. O fim dessa história é muito óbvio: seguindo a vontade do lenhador, pularam todos os fazendeiros na água e morreram afogados. E nos jornais do dia seguinte, estampada na primeira página em letras garrafais a notícia "Mistério: principais agricultores da região morrem todos afogados". Na última folha, quase esquecida, chamando tanta atenção como uma velha bula de remédio que ninguém usa, a notícia: "Praga de ratos atinge a cidade. Teriam as autoridades competentes esquecido como eliminar essas criaturas?". O lenhador sorriu, dobrou seu jornal e caminhou em direção à floresta, em dúvida consigo mesmo se descobriria um dia se estava louco ou se realmente, Horácio, haveria mais mistério entre o céu e a terra do que a vã filosofia dos fazendeiros poderia imaginar.