Uma História

Era uma vez uma história ruim. Não era uma história fraquinha ou uma história sem graça. Era uma história realmente ruim.

Era malfeita, com personagens sem atrativos, parte dela era arrastada, cansativa, e seu final, totalmente óbvio. Enfim, era ruim em todos os sentidos. Mas viveu mais do que esperava, até que se tornou suicida.

Quer dizer, as boas histórias vivem bastante tempo e as grandes histórias são praticamente imortais, mas as histórias ruins geralmente morrem muito cedo. São contadas umas poucas vezes, não agradam, e as pessoas acabam as esquecendo. O esquecimento é a morte das histórias. Esta história ruim, no entanto, teve um destino diferente: era tão ruim, que se tornou um exemplo.

Nenhuma história gosta de se tornar exemplo. Presas a manuais acadêmicos, sendo analisadas, interpretadas, reinterpretadas, esquadrinhadas. Histórias existem para serem saboreadas, não dissecadas. De modo que as boas histórias tem verdadeiros chiliques quando, de repente, se veem em uma turma de universitários ou na boca de críticos que jamais as conheceram de fato, tendo sua estrutura desmembrada camada por camada, sua verossimilhança averiguada, sua temática esmiuçada, o tamanho de seus parágrafos comentado... é verdadeiramente constrangedor. Ódio profundo, então, nutrem pela Semiótica. Quando começam a encaixá-las naqueles quadros pavorosos sentem-se como se estivessem despidas frente a montes de desconhecidos. As grandes histórias até não se incomodam tanto. Acreditam que esse é o preço da fama (de um modo até um pouco pedante, devo dizer).

Mas, para as histórias ruins, virar um exemplo é um verdadeiro martírio. Ter as pessoas constantemente apontando suas falhas, exibindo seus defeitos, as torna motivo de chacota entre as outras histórias. Além disso, as impedem de morrer.

O que nos traz à história ruim a que nos referimos. Desde que se tornara um exemplo, não tivera um instante de paz. Estava cansada de ouvir piadinhas das outras histórias. “Pra quê todas essas vírgulas? Tá fazendo coleção?” “Isso é mesmo uma metáfora ou é só uma ênclise mal colocada?” “ Se eu já sei o seu final desde o começo, você começou do fim ou está do lado do avesso?” “Seu narrador já decidiu se está na ativa ou na passiva?” Há há há. Nessas horas até as histórias dramáticas bancavam as engraçadinhas. Decidiu, então, que queria ser esquecida, a qualquer custo. Buscou conselhos com as sábias histórias clássicas; tentou se juntar às descartáveis crônicas diárias atuais; até se misturou com as histórias policiais – de repente se tornava vítima de algum serial killer ou mesmo de uma bala perdida. Tentou de todas as formas, mas nada adiantava. Sempre havia alguém a exibindo a algum pretenso escritor, para mostrar-lhe o que não fazer. Começou a achar que nunca seria esquecida.

Mas o pior ainda estava por vir.

Sua trajetória era tão triste, que as outras histórias começaram a contar a história da história ruim. De sua desgraça, nasceu, assim, uma história, que era uma história trágica. E uma boa história trágica! Para seu desespero, a história de sua história logo alcançou prestígio entre as outras histórias, passando a ser muito respeitada. Assim, enquanto a história ruim continuava passando por toda sorte de humilhações, sua história era ouvida com atenção e consternação, começando até a frequentar bons salões literários. A história ruim passou a ser olhada por sua história com soberba, e até ela começou a proferir gracinhas para sua genitora. E isto apenas tornou sua vida ainda mais trágica... dando ainda mais valor a sua história!

Chegara ao fundo do poço. Passou a frequentar os bares mais decadentes, convivendo com as histórias de bêbados que, em sua desorientação, nem pegavam muito em seu pé. Esses bares também eram muito frequentados por piadas de bêbado, por quem não nutria nenhuma simpatia, mas, àquela altura, já não se importava. Pouca coisa, aliás, ainda lhe importava. Começou a beber muito e, em seus devaneios, quando perdia a própria noção de si, acreditava que era uma história sem pé nem cabeça. E ficava feliz, porque melhor ser uma história sem sentido do que uma história ruim. Mas quando a bebedeira passava, era obrigada a se confrontar com a realidade. Uma história ruim era apenas o que continuava a ser, e para sempre o seria.

Não sei precisar por quanto tempo durou seu sofrimento. Para ela, uma eternidade. As noites ébrias se alternavam com dias de total prostração, largada, imunda, em alguma sarjeta. Dias intermináveis. Noites perpétuas. Tinha medo de ter se tornado imortal e nunca conseguir fugir daquele ciclo de dor.

Um dia, porém, algo estranho aconteceu. Começou a ser contada sem ser em exemplos. Narradores a contavam, e interlocutores, paradoxalmente, comentavam: “Nossa, essa é péssima! Muito boa!” Por alguma razão inexplicável as pessoas passaram a encarar seus defeitos como uma qualidade! Havia se tornado uma história trash, um cult. Iniciava-se uma nova etapa em sua vida. Passou a andar acompanhada de histórias verdadeiramente horrorosas, cada uma se gabando de ser mais canhestra do que a outra. Quanto pior, melhor. Divertiam aos outros e umas às outras. A história ruim achava-se revigorada e, pela primeira vez na vida, feliz.

Foi quando conheceu uma comediazinha romântica, toda fofa, toda graciosa. Se tivesse um rosto, lembraria bastante o da Julia Roberts. A história ruim se apaixonou quase imediatamente, mas tinha receio de se aproximar, de demonstrar o que sentia. Ela era tão linda enquanto ele era tão malfeito... vivenciaram, então, vários clichês bem típicos, até chegarem ao corolário de que o amor supera qualquer barreira. Tiveram vários filhos, agradáveis histórias infantis que depois se tornaram romances infanto-juvenis e juvenis meio problemáticos, como qualquer adolescente. Andavam com companhias meio estranhas, como bruxos, semi-deuses e vampiros, mas que no fundo eram boa gente.

Casada e feliz, a história ruim teve seu merecido descanso e, salvo tropeços narrativos e licenças literárias comuns na vida de qualquer história, tinha uma boa vida.

E assim, pode-se dizer que a história ruim viveu feliz para sempre.

O mesmo só não pode ser dito de sua história. Com o “final feliz” de sua genitora, a tão trágica história da história ruim perdeu todo seu glamour e tornou-se apenas... uma história comum.

Rogerio Basile
Enviado por Rogerio Basile em 17/10/2015
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