João Botas de Ferro - Contos de Fadas para Adultos

Contos de Fadas para Adultos

João Botas de Ferro

João Botas de Ferro, como era chamado, guardava um segredo que não dividia com ninguém, deixava-o queimando dentro do seu peito, incandescendo sua alma e seu reflexo, alimentando-se da própria dor e raiva. Ele evitava os riachos, as exposições, suas namoradas praticavam o coito com João vestido de calças e botas; era um homem estranho, resguardado. Desde a infância usava botas de ferro, como as dos guerreiros, no entanto, ele não passava de um simples camponês que ganhava a vida cortando lenha.

No anoitecer de uma primavera pálida, João estava no meio da floresta, se preparando para voltar à sua casa, quando ouviu pedidos desesperados de socorro, ele correu entre os arbustos, mesmo com o peso das botas o lenhador era possuidor de grande agilidade, e foi em uma clareira que ele encontrou a princesa Tamita perdida, sendo rondada por dois orcs famintos. Habilidoso com o machado, João cortou a cabeça dos dois monstros e levou a princesa de volta para o reino. Eles se apaixonaram imediatamente e não muito tempo depois o casamento foi armado, tão rápido quanto a lâmina do camponês que salvara a vida de sua amada.

Mas havia um pequeno problema em tudo isso: o seu segredo.

Se Tamita o visse desnudo, anularia o casamento, mandaria matá-lo por enganação ou coisa pior. Ele precisava voltar ao pântano.

Houve uma manhã em que João finalmente desamarrou o cavalo e patinou até as masmorras da relva, onde nenhum guerreiro ousava pisar. Mas João estivera lá uma vez, há muito tempo, e recordava precisamente cada canto das sombras nebulosas que dançavam entre os galhos deformados.

O lenhador, futuro príncipe, entrou em uma caverna e foi saudado pela bruxa Lucélia, a mais vil de todas as mulheres.

- Como estão as botas de ferro? – ela zombou.

- Eu preciso das minhas pernas de volta.

Lucélia gargalhou e sua voz ecoou de maneira sinistra.

- As tuas pernas estão com o meu filho, Ateu, o sem pernas. Eu lamento, meu jovem camponês, não poderás correr com osso e carne, continuará vestido em ferro.

- OH, bruxa malevolente, teus poderes são tão grandes que nem mesmo Deus ousaria lhe desdenhar. Eu me tornarei príncipe em alguns dias e preciso dos meus pés de volta, e dos meus joelhos e de minhas coxas. Dê-me minhas pernas e eu lhe darei qualquer coisa que desejar.

- Qualquer coisa? – a bruxa pensou bastante, ela sorria o tempo todo, revelando, abaixo do olhar lunático, seus dentes podres, estes exalavam o odor da morte e das decomposições dos sentimentos humanos, havia no seu corpo apenas o ego em forma de lama. – Há uma coisa que podes me conseguir.

- O que quiseres.

- Vai tu trocar de corpo com o meu filho feioso, e ele roubará a beleza do rei na festa anterior ao teu casório. O rei se tornará um cadáver feio e repudiado, enquanto meu filho gozará da sua força e boniteza. Assim que ele voltar com o frasco de sangue contendo a beleza do rei, teu corpo será devolvido, e meu filho será belo e saudável.

João sabia que tudo isso não passava de uma traição, ele estaria condenando um homem inocente para gozar de seus privilégios individuais. Mesmo assim o amor pela princesa e pelo reinado lhe era muito maior do que qualquer valor moral, e Ateu, o filho da bruxa, foi chamado, ele tinha a pele descarnada, repleto de feridas e bolhas, olhos tortos e dentes espinhosos, exceto as pernas, estas eram belas, fortes, de pele macia, enquanto as de João simplesmente não existiam, o vácuo havia sido escondido a vida inteira por botas de ferro que se prendiam às sobras das coxas.

As pernas foram trocadas e também os corpos, tudo com a ajuda de magia negra.

Então se deu a noite do baile. João dançou com a noiva e no final da festa ele foi ao encontro do rei e o chamou para que visse o presente escolhido para dar à sua amada, mas não havia nada para mirar, senão a faca que perfurou o coração do rei, arrancando-lhe todo o seu sangue. Ateu fugiu para o pântano, a fim de levar a beleza do rei para a sua mãe bruxa.

Quando João retornou todos estavam em luto, o casamento fora adiado e aconteceu somente um ano após a morte do pai de Tamita. O lenhador agora assumira o trono, tinha suas pernas de volta e podia procriar com a nova rainha. Eles tiveram anos muito felizes juntos, porém Tamita sempre perdia os filhos gerados em seu útero, eles não passavam mais do que três meses dentro do seu corpo, e quando saíam pelo seu canal vaginal, eram na maioria fetos monstruosos e grandes. Muitos magos vieram abençoar a nova rainha, pois acreditavam ela estar enfeitiçada por alguma maldição. Chegou o dia em que um dos magos capacitou-se em fazer a gravidez durar tempo o suficiente, e todos no reino aguardaram com apreensão dia a dia da gestão, sempre esperando o pior acontecer.

Durante esses felizes meses algo incomodou Tamita e seu marido rei: um orc com botas barulhentas de ferro (que sempre anunciavam a sua chegada) invadia o castelo todas as noites e tentava chegar perto da rainha, na certa para matá-la, e apesar dos esforços da guarda real, o monstrengo nunca era pego, ele conhecia cada canto do castelo, cada passagem secreta, o que lhe permitia fugir com facilidade. Além disso, João começou a sofrer de uma doença de pele terrível, muitos diziam que ele traíra a esposa e contraíra uma maldição pelo adultério, mas fato era que sua imagem ficava cada dia mais deplorável e ele se escondia atrás de uma máscara de ferro e capa negra, alguns alegavam que ele estava se tornando o diabo em pessoa; os magos muito tentavam lhe auxiliar, contudo, sem sucesso.

Tamita vivia rodeada de guardas para protegê-la do asqueroso orc, mas na noite do parto ela quis que em seu quarto permanecesse apenas seu marido e a parteira. Quando o bebê saltou para fora, jorrou sangue apodrecido e vermes. A criança era tão feia que a parteira jurou ter aberto a toca do inferno, ela se assustou a ponto de sair correndo e gritando. Tamita se encolheu na cama e não quis pegar o filho no colo, aquele bebê era nojento, tinha a pele mais asquerosa que já havia visto. Em contrapartida, o rei foi até o pequeno chorão e o agradou e mimou. Neste instante um orc pulou detrás do espelho, onde uma passagem secreta era escondida, e atacou o rei, eles guerrearam e muito sangue se espalhou; Tamita estava abarrotada em fraqueza para chamar por ajuda, mas seus olhos ainda enxergavam muito bem e ela viu que metade do rosto do orc era exatamente igual a como João fora um dia.

Por fim o orc arrancou a máscara do rei, um rei monstruoso e macabro, cravou a espada em seu rosto e o senhor do trono sucumbiu. O orc foi até Tamita e lhe explicou que na verdade ele era João, e que trocara de corpo com Ateu, este matou o pai dela, porém não quis beber de sua beleza, preferiu continuar em seu lugar e tornar-se rei, enquanto a bruxa Lucélia lhe trancafiou na caverna, mãe e filho pretendiam dominar o reino com criaturas das trevas e o filho deles seria o escolhido para assumir o trono por muitos e muitos anos, mas João contou que, muito genial, enganou a bruxa dizendo que a corrente estava solta, e quando ela se aproximou para apertar a tranca, ele a apunhalou com uma pedra e a matou, foi neste instante que a magia começou a ser revertida e ele pôde invadir o reino para tentar esclarecer tudo.

Tamita vomitou, e depois do regurgito desejou que João fosse infeliz pelo resto da eternidade, pois ele transformara a vida de todos à sua volta em um inferno.

- Você é mais monstruoso do que a bruxa e seu filho – ela disse alguns segundos antes de falecer.

João urrou, irado e revoltado, arrependido em suas mágoas, imerso na aspereza de seu carma. Não hesitou em se armar com a adaga e matar o pequeno bebê, enfiando-lhe a lâmina no pescoço.

Ele não merecia ficar e reinar. João vestiu-se com capa e máscara, ainda usando suas botas de ferro, e caminhou para muito longe do reino, a magia não fora revertida por completo e ele nunca mais foi visto por ninguém.

Moral:

Nossos desejos se realizam por meios incertos, mas as linhas do destino sempre entortam quando o caminho é o do mal.