O jantar do rei Sabin - contos de fadas para adultos
Nota do autor:
Quero agradecer àqueles que leram o primeiro conto e os que estão chegando o agora. Toda semana haverá novos contos. Espero que apreciem a próxima fábula; a idéia me surgiu quando em reflexões a respeito das origens as quais nós humanos somos condenados, onde fazem parte também a tradição cultural e ética do lugar que viemos. Boa leitura.
Contos de fadas para adultos
O Jantar do rei Sabin
O rei Sabin era tão feio que doía os olhos. O criados evitavam encará-lo, não por ser o mais terrível dos homens a pisar naquelas terras, mas sim por ter a aparência tão monstruosa que assustava de ver até mesmo a sua sombra. Por ser tão feio, ninguém lembrava muito de como era o seu rosto. Corriam boatos pelos arredores do reino de que um dia um ladrão de milhos foi ordenado a olhar nos olhos do rei para que recebesse sua sentença: o infame enlouqueceu na hora e se enforcou no dia seguinte.
Sabin se vestia muito bem, obrigado. Trajes imperiais, em vermelho e dourado, cortinas esvoaçavam pelos ombros, as botas em couro pesado protegiam as pernas do chão sujo. Ele vinha de uma linhagem de reis adoentados, todos horríveis em suas belezas deformadas, coitadinhos, mas com tanto ouro e glória pouco se importavam de serem tão feios, sem cabelo na cabeça, rostos tortos, pele manchada igual ao salame, cobertos por doenças e pestes alérgicas. Quem muito se atentava às suas feiúras eram as prostitutas que lhe serviam favores de cunho sexual, meninas de quinze anos ou menos, as amaldiçoadas morriam pouco depois de irem para cama com os reis de linhagem pura, ou por contrariem alguma doença epidemiológica ou por vomitarem tanto até o estômago saltar da garganta.
Sabin era puríssimo. Filho de uma irmã, e toda a linhagem anterior se casara com irmãos e filhos, todos muito feios. A rainha Adélia tinha o sangue de Sabin, era sua filha, e para ele gerara outras três filhas: Russa, Ivone e Martina. Fazia-se necessário a rápida procriação da linhagem sagrada, já que os filhos de sangue puro tinham pouco tempo de vida. Sabin, mesmo estando na casa dos trinta, já não portava tanto vigor como aos quinze, entretanto, sua fraca esposa Adélia vinha definhando a cada dia mais, e suas três filhas seguiam o mesmo caminho, se aos vinte anos chegassem já seria o bastante. Se ele não gerasse um herdeiro homem logo, a sagrada linhagem pura que, segundo os anciões ancestrais, fazia o reino prosperar, iria desaparecer.
“O sangue puro que nas veias da corte corre é a magia responsável por defender nossas muralhas e abastecer nossos rios”.
Tanta feiúra, tanto poder.
Mas havia uma menina da linhagem sagrada que não compartilhava de tal beleza aterradora. Era Isabel, a menina dos olhos violeta, sua boniteza era tão rara e resplandecente que o rei Sabin mandou enjaulá-la na mais alta torre do reino, para que ninguém a tocasse. A pobrezinha tinha somente seis anos, mas após sua primeira menstruação ela se tornaria a mais linda esposa do rei. O império estava sendo ameaçado por ciganos que queriam roubar a pequena por ser tão bonita, segundo os magos da corte eles a usariam em um ritual de sacrifício à deusa Sarah. Um dos ciganos já tinha sido capturado no reino, mas ele conseguiu fugir duas vezes, e na sua segunda aparição deu de cara com a linda menina de olhos lilases, o que despertou a cobiça do seu povo. Mas isso pouco fazia o rei temer, já que a pureza do sangue real mantinha as fortalezas do reino erguidas e protegidas, fortes para não permitir nem que uma única formiga passasse por ela.
No entanto o filho homem devia vir logo, ou a árvore genealógica poderia ser rompida, e isso seria o fim. Só que não era permitido deitar com uma das filhas ao menos que se casasse com ela. Então, para agilizar as coisas, Sabin ordenou à Adélia que organizasse um jantar onde cada uma de suas três filhas deveria preparar um prato especial, e o sabor que mais o agradasse conquistaria o trono. A feiosa Adélia preparou a grande festa junto às suas horríveis filhas, que já se aprontavam para cozinhar a melhor das refeições. Muito se fofocava pelos cantos do castelo, havia apostas para saber quem assaria o porco e qual delas faria o pudim de limão que tanto o rei amava.
Chegou a grande noite. Adélia entrou no salão com elegância, a loira peruca majestosamente penteada, brincos de perolas gigantes, vestido dourado, tão pesado que mal permitia-lhe caminhar. Ela vinha com o primeiro carrinho. Abriu a bandeja e havia carne. O rei experimentou: macia e apetitosa, tinha sido temperada com canela e outras especiarias.
O segundo prato foi trazido pela rainha. Carne de novo, junto a um molho espesso de agrião e ervas.
O terceiro prato enfim chegou. Mais carne, regada ao molho de abacaxi. Mas, subitamente, a rainha trouxe um prato surpresa, havia carne também, com molho vermelho e picante, acompanhado de feijões, não era lá muito saboroso.
O rei Sabin pensou. Pensou mais. Tomou vinho. Pensou de novo. Decidiu pelo primeiro prato.
Adélia se dispôs à sua fronte para anunciar a nova rainha:
- Meu belo marido, rei dos reis, poderoso imperador das fortalezas inabaláveis. Tu és tão grande como o céu, grande também é teus poderes. O primeiro prato seria da tua filha Matina, mas não o é.
- Como assim minha esposa? De qual das filhas então o é?
- De nenhuma delas.
Os convidados emitiram ecos de surpresa. Múrmuros se espalharam pelo salão real, mas foi pedido silêncio com rigidez.
- Então quem os fez? – o rei quis saber, suas mãos tremiam igual as folhas que farfalham na tempestade.
- Eu cozinhei todos os pratos – disparou Adélia.
Sabin se levantou, cansado e irritado:
- Porque fizeste isso rainha? A ti não cabia cozinhar. E agora, com quem vou casar?
- Perdoe-me meu rei marido, mas nenhuma delas pôde preparar os assados.
- E posso saber por que aquelas infelizes não se dispuseram a cozinhar para mim? Está dito, as duas que não forem casar terão as cabeças degoladas!
- Nenhuma pôde cozinhar para o senhor porque são elas o cozimento.
- Bela piada rainha – quando o rei riu, todos riram. – Tu me pegaste. Muito bem armado. Agora tragam as meninas.
- Eis elas aí, nas bandejas – Adélia apontou para as comidas.
O rei se ajoelhou e gritou. Ele nunca se ajoelhara antes. Quase chorou, mas seu rosto avermelhou e inchou tanto que dos seus olhos não passariam nem o fio de uma seda.
Ele se ergueu, furioso, e disse:
- Por que mataste nossas filhas? Vem tu a mim, passaremos o resto dos nossos dias a procriar.
- Não será possível, meu terrível rei. Este quarto prato na verdade é a minha surpresa final. Tu comeste meu útero, e não mais poderei ter filhos.
- Desgraça! Amaldiçôo a ti. Tu terás a pior das mortes – pouco se ouvia o que Sabin falava, sua voz se confundia entre rosnados e rugidos. – Agora as muralhas enfraquecem e os guardiões mágicos do castelo não têm mais poder. Tu destruíste tudo. Em pouco tempo os ciganos entrarão aqui e tomarão Isabel, a mais linda de todas as moças.
- Eles já a tomaram. Olhe para fora.
O rei foi até as janelas e visualizou o seu reino: tudo pegava fogo, pessoas corriam, guardas eram assassinados. Os poucos soldados que restaram amarraram a rainha.
- Isabel não é tua filha e nem nunca será, seu monstro de linhagem doentia – Adélia cuspiu na face do seu marido. – Lembra do cigano ladrão? A primeira vez em que ele esteve no reino dormimos algumas noites juntos, nos amamos mesmo com a feiúra a qual vós, reis maquiavélicos e feiosos, me dispuseram. Das noites de amor verdadeiro herdei Isabel, por isso ela não é feia como nós, pois a menina tem sangue de outra linhagem. A herança do poder sagrado do reino acabou. Russa, Ivone e Martina se horrorizavam só ao pensar em deitar ao teu lado, e não foi difícil convencê-las a se sacrificarem pela linda Isabel. A estas horas minha, só minha, bela filha já está nos braços do verdadeiro pai, e o reino em chamas arde, caminhando até a destruição.
- Queimem-nos! Queimem o que restou da linhagem sagrada. Oh, meu deus, o império foi destruído!
Os soldados obedeceram e, antes que os ciganos chegassem, o salão foi inundado em fogo e brasas. Amarraram Sabin e Adélia para morrerem juntos. O sangue puro ferveu na incandescente labareda e a mais bela de todas as moças fugiu para longe do reino, para viver na floresta com os ciganos, feliz para sempre.
Moral:
Nossas origens nos aprisionam dentro de nós mesmos.