858-A REVOLTA DAS FERRAMENTAS - Vovó Bia Conta
A REVOLTA DAS FERRAMENTAS
Domingo à tarde na Fazenda Palmital. Sol de rachar sobre campos, matos, lavouras e pastos. Não se via movimento algum nas áreas iluminadas pelo sol. Pessoas, animais, pássaros e insetos, todos procuravam o abrigo das sombras, qualquer que fosse a proteção.
A grande casa-sede era propositadamente rodeada de alpendres pelos quatro lados a fim de proporcionar frescura interna dos cômodos e um lugar ameno para se estar mesmo nas tardes como aquela.
No alpendre da frente Vovó Bia tricotava calmamente, em consonância com o arrastar do seu tempo. Dorinha estava sentada do outro lado, lendo atentamente um livro de histórias que seria motivo de arguição na segunda feira, na escola.
Podiam-se ouvir as vozes dos adultos, na sala. Visitas de vizinhos e dos filhos de vovô e vovó, residentes na cidade e invariavelmente passavam os domingos na fazenda.
Vindo dos fundos da casa, tio Pedrinho subiu a escadaria. Trazia nas mãos um tronco seco de casca macia, no qual uma viçosa Bailarina há anos se agarrava e agora exibia um exuberante cacho de flores amarelas, que dançavam a qualquer movimento do tronco.
— Que beleza! — exclamou Dorinha, quando o tio colocou o tronco sobre a mesinha, próximo de onde ela estava.
— Estava lá no pomar, onde ninguém via. — Disse ele, que se dirigiu à sogra, perguntando:
— Posso dependurar aqui no alpendre, dona Beatriz?
Vovó Bia, que estava atenta a tudo o que acontecia na casa-sede e nos arredores, respondeu:
— Pode sim, Pedro. Já tinha falado pro Aníbal trazer as parasitas pro alpendre.
A bailarina, que se assemelhava a uma orquídea, era tratada ali na fazenda como parasita, dado que era encontrada nos socavões úmidos, agarrada aos troncos das árvores e aparentemente lhes sugava a seiva.
— Vou dependurar esta e depois trago as outras, disse Pedro.
Subiu no assento do banco encostado à parede, e tirando da cintura o martelo e do bolso um grande prego, começou a bater o martelo sobre o prego na parede.
— Ai! — exclamou, quando o martelo acertou-lhe o dedo. — Martelo safado! Está fora do equilíbrio! Me acertou o dedão!
Era uma situação verdadeiramente inesperada, acontecendo justamente com ele, marceneiro de grande habilidades e acostumado a lidar com ferramentas desde a juventude.
— Machucou, tio Pedrim? — Perguntou, solícita, Dorinha. — Quer que vá buscar arnica?
— Não precisa, já passou.
Vovó Bia assistia tudo com a tranqüilidade que lhe era própria. Em vez de se preocupar com a martelada no dedo do genro, perguntou-lhe:
— Pedrim, você que vive trabalhando com todas as ferramentas de marceneiro, me fale, qual você acha a mais importante?
— Ara, dona Beatriz, não sei dizer não. Trabalho com todas, preciso de cada uma a qualquer momento, e prá mim são todas iguais, tem a mesma utilidade.
— Pois é. Já ouviu falar história da briga das ferramentas na carpintaria?
Dorinha apurou os ouvidos, quando escutou a palavra mágica de vovó: “história”.
Pedro sem interromper as batidas sobre o prego, estranhou:
— História de briga de ferramentas? Essa eu não conheço.
— Pois é, prosseguiu vovó Bia. — Foi uma vez numa carpintaria quando as ferramentas começaram a se queixar mutuamente, e se reuniram para acertarem as suas diferenças.
— Essa é boa! — disse Pedro, talvez descrente, mas curioso, tal qual Dorinha, a seu lado.
— Alguns escolheram o martelo, justamente esse martelo aí na sua mão, para dirigir a reunião. Mas outros reclamaram, não concordaram dizendo:
— Ele não serve prá dirigir nada.
— Por que não posso? — Perguntou o martelo.
— É muito barulhento, e só vive dando golpes e pancadas. Não serve!
O martelo reconheceu que, sim, vivia golpeando, mas que era uma ferramenta do marceneiro que só o usava para golpear e dar pancadas. “Não posso nada de diferente. Fui feito para isso!”
Falaram no parafuso para a direção, mas aí foi o martelo que estrilou:
— O Parafuso? Mas façam-me um favor! O cara só sabe dar voltas e mais voltas para conseguir alguma coisa!
— A lixa, a lixa! — Gritaram algumas ferramentas, um grupinho reunido no canto da banca do marceneiro.
O parafuso, já desclassificado, interveio:
— Mas ceis tão doidos. A lixa! Só vive se esfregando! Tá sempre em atritos, pois é muito áspera quando trabalha.
A lixa concordou e indicou outra ferramenta: o metro.
— Ora, dona Lixa! Esse então é que não serve mesmo pra nenhuma direção. — O serrote mexia seus dentes com raiva. — Ele vive exigindo que tudo seja feito na sua medida. Pensa que é perfeito. Não tolera um milímetro de diferença. Assim não dá. Tem que ter tolerância.
A reunião estava nesse ponto quando foi interrompida pela entrada repentina do marceneiro na oficina, que começou trabalhar.
Usou o serrote, metro, martelo, furadeira, plaina, parafuso, chaves de fenda, todas as ferramentas, e em poucas horas, produziu, a partir de rústicas peças de madeira, um fino móvel, funcional e perfeito.
Então, terminado o trabalho, o marceneiro limpou a bancada, guardou as ferramentas cada qual no seu lugar e saiu.
As ferramentas retornaram à discussão, mas aí o pincel de verniz, todo macio e polido, falou com sua voz suave:
— Amigos, nós nos queixamos de nossos defeitos. Mas aí chegou o marceneiro e usou nossas qualidades. Usou aquilo pra o qual estamos preparados e onde damos o melhor de nós. Não vamos continuar nossa discussão sobre nossos pontos fracos, mas vamos nos concentrar no que temos de melhor.
— É isso mesmo! falou o formão. Somos uma equipe, sozinhos ninguém faz nada até o fim, mas reunidos, e nas mãos de um marceneiro. Ninguém nos supera!
Vovó Bia cessou a narrativa. Dorinha estava olhando para o ar, talvez ainda tentando entender a moral da história.
Seu Pedro, que era um marceneiro cuidadoso e caprichoso, concluiu:
—Pois é, dona Beatriz. E vou falar uma coisa prá senhora: Quando a ferramenta é boa, metade do serviço já está feito.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte , 19 de setembro de 2014
Conto # 858 da série 1OOO HISTÓRIAS