Pássaros

"Às vezes queria ser como um pássaro e voar despercebido pelos campos inertes"

A segunda garrafa de vinho já estava vazia, pilhas de livros ao seu lado e diversas anotações espalhada pela mesa. Trabalhou por horas: leu um grosso livro inteiro, pensou diversas maneiras de construir o seu pensamento, no entanto, nada parecia satisfatório. Não conseguia de modo algum formular a verdade do universo ou o sentido de sua existência. Já assoberbado pelo trabalho e puxado para baixo por causa de mais um gole de vinho caiu na tentação de interromper seu árduo empenho pelo menos por hora.

Passou horas olhando para a parede e de repente sentiu dentro de seu peito uma intensa fisgada seguida de uma incomoda sensação de vazio, o seu trabalho não fazia mais sentido algum, nem sua vida e nem seus planos de entrar para a história como um líder do pensamento contemporâneo. A solidão o dominava, sentiu falta de seus pais que lutou tanto para abandoná-los, de sua mulher e filhos que o deixaram no auge de sua loucura insana. Um súbito ódio o tomou conta... Como defender ou ajudar uma humanidade tão porca e miserável? Como eu posso entender dos homens e de suas vidas tão distante assim deles? Aos poucos o ódio tornou- se angústia, forçou sua mão contra a sua cabeça sentido sua unha cravar o seu rosto, sangrando e ardendo em pequenos aranhões.  

Em breves segundos de loucura queimou todos os livros e anotações próximas, ao contemplar o fogo crepitando sentiu-se melhor e começou a gargalhar assustadoramente como um maníaco, o calor do fogo o envolvia, podia sentir-se mais vivo agora, mas aos poucos as chamas foram intimidando-se até se tornarem meras cinzas de papéis.

O sentimento de angústia retornava, entretanto, agora um vento frio percorria o seu corpo, poderia até mesmo chorar se não fosse a sua imensa frieza interior a impedir. Levantou-se do chão quente, a fumaça branca incomodava as suas narinas, não sabia se era o álcool, se era real ou se era a sua loucura, mas se sentia observado, andou lentamente para a porta de seu cômodo esfumaçado, começou a correr, uma dose de pânico percorria por suas veias e artérias: estava sendo perseguido... Mas não havia ninguém, apenas mais um de seus devaneios lunáticos. Colocou a mão sobre seus joelhos tentando descansar, seu coração pulsava forte, seu peito chiava, mal podia respirar... Estava na cozinha à porta do quintal poderia cair ali mesmo e repousar. Mas não podia, pensou ouvir passos no corredor ao lado, recuperou o fôlego e pôs-se a correr novamente.

Chegou ao quintal, era ainda aurora, já tinha perdido a noção de dia e noite, e essa era a primeira vez na semana que saia dos limites de sua toca. Os fios de sol atravessavam suas lentes redondas e incomodavam as suas retinas, os raios solares ardiam em sua pele branca, desacostumada com o banho de sol. Começou a divagar distraidamente, entretanto, ainda em estado de alerta e a adrenalina correndo pelo seu corpo. Pensou em correr novamente, porém seus pés entrelaçaram e previu a eminente queda não podia fazer nada se não se entregar... E cair.

A grama fofa que o seu criado - que não lembrava o nome - cuidou amorteceu a sua queda, há tempos não sentia o prazer da queda, não quis levantar apenas virou sua face ao céu para contemplar aquele local inexplorado de sua casa: rosas de todas as cores e formas enfeitavam a fachada de sua residência, arbustos, pequenas árvores, e alguns frutos maduros completavam aquele local. Aos poucos flashes de sua vida tomaram sua mente, lembrou-se de quando era criança e brincava inocentemente com seus primos e irmãos. Lembrou-se de sua juventude quando ainda era um simples professor de escola pública, seus sonhos e paixões, comprou aquela casa logo após pedir sua primeira e única namorada em casamento. Lembrou-se dos felizes e pacatos anos de casado quando brincava com seus filhos naquele mesmo quintal, e quando conversa noites adentro com seus amigos sobre a vida e o universo.

Lentamente as imagens foram dissipando de sua mente, uma fina e quente lágrima rasgou seu rosto, há muito não chorava, a sensação poderia ser boa se não fosse o nojo por si próprio: não tinha mais amigos, familiares e nem mesmo vizinhos, seus filhos o desprezavam, sua ex-mulher o odiava, intrigas e traições marcaram a sua vida adulta, isolou-se dos amigos, levantou falsas acusações, roubou idéias, traiu a mulher com prostitutas, não acompanhou o crescimento de seus filhos. Transformara-se em um monstro, tudo pela estúpida idéia de entender a vida, o poder o fascinou, a inteligência e sucesso o endureceu, o fez sentir superior aos demais, buscou soluções para a vida enquanto se afogava em uma grande solidão e nem mesmo o cristo de sua parede podia curar.

Desejou não mais viver, encontrou algo pontiagudo e sem pensar duas vezes cravou em seu peito, respirou fundo, o sangue jorrava e ele se contorcia em dor, mesmo com a visão turva conseguiu ver um pequeno pássaro sobre as suas flores, um pensamento final o ocorreu: "Felizes são os pássaros que voam pelo ar, que vivem, que amam, que comem, que sofrem, que se alegram, que se desesperam, sem precisar pensar no sentido de tudo isso". Continuou olhando para o céu, o sangue encharcava sua camisa, em instantes sua hora chegaria, queria se desculpar, beijar seus pais e seus filhos, abraçar aqueles que fez sofrer, no entanto, era tarde de mais tudo estava acabado, alguém entrou apavorado em seu quintal, já era tarde iria morrer, mas precisava cumprir sua missão, sua pesquisa estava concluída de modo tão simples que ele percebeu qual era a diferença entre o saber racional e o saber divino da alma, agarrou o braço moreno próximo a si, sua mão sangrenta encharcou o braço moreno com seu sangue, pode ver as mexas pretas na sua face, mas não reconheceu quem era sentindo a morte se aproximar disse: “Andei por tantos destinos procurando respostas, mas apenas no simples pude encontrá-las: o segredo da vida é viver, viver por excelência, viver por amor sem medo da morte, porque morrer não dói, mas o que dói é uma vida mal vivida, e a sensação ao final de que tudo foi em vão." Ao terminar ele sorriu de uma maneira pura que há tanto tempo não fazia, sentiu uma pressão em sua mão e uma lágrima cair em seu peito, olhou novamente para o rosto da mulher oculta e finalmente reconheceu... Era o grande amor de sua vida, ela sorriu reciprocamente e disse: "Sempre soube que um dia voltaria para mim, meu anjo" Ela beijou sua testa e fechou suas pálpebras, tudo era escuro... Era o fim, no entanto, ainda sentia, ainda pensava: tudo era tão sereno e impreciso, apenas a voz da mulher amada o guiava: "Vamos finalmente você está pronto para conhecer os segredos do universo."

Josué Viana
Enviado por Josué Viana em 24/07/2015
Código do texto: T5322468
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