BILAU DA PEIXA

(Republicação)

Mesmo nos períodos mais rigorosos de estiagem, o córrego que passa por Venturosa não seca.

O pessoal do vilarejo conta histórias de aparições e diz já ter visto coisas muito estranhas nas margens desse córrego, principalmente nas noites de lua nova...

O causo mais antigo é o de Bilau da Peixa que ao que tudo indica, é a justificativa para o corguinho nunca secar.

É assim:

De uns tempos para cá, Bilau, um sujeito nascido e criado em Venturosa, tornou-se arredio com todos, chegando e saindo de casa sem ser notado por ninguém.

Dizem até que perdeu o gosto pela vida.

Alimenta-se exclusivamente de pescado e, por causa disso a sua casa, de pau a pique, está permanentemente impregnada pelo cheiro de peixe secado ao sol.

O povo também diz que tudo isso começou depois que ele foi fazer uma pescaria no pontal do córrego.

É um local solitário onde o Córrego das Onças se junta ao Rio Grapiúva.

Mais um pouco de erosão e o local se transformaria numa ilha, porque é uma faixa de terra estreita com muitas árvores altas, muita galharia, muito mato rasteiro que se espalha pelo barranco que faz a descida abrupta para as pedras grandes e brancas, lavadas pelas águas do córrego nos muitos milhões de anos em que lá se encontram.

Pouco depois do meio dia, Bilau juntou as tralhas de pesca, o cavador e seguiu para o pontal. Apanhou um minhocão, preparou e lançou o anzol. Com a calma que caracteriza o homem do interior, fez um cigarrinho de palha, fumou até o toco e nada de peixe.

Parecia que naquela tarde todos os peixes tinham ido dormir no fundo do corguinho, como todos o chamavam.

Bilau passou então a arremessar o anzol como se estivesse batendo com um chicote, da mesma forma que o pessoal faz para pegar truta, até que fisgou algo que devia ser peixe grande, pois o tranco foi tão forte que quase arrastava Bilau para dentro do corguinho.

E haja força para segurar a vara que vergava quase a ponto de se partir.

As horas se passaram e anoiteceu...

Noite escura...

A lua nova, no ocaso, revelava o céu profundo, pontilhado de estrelas.

Bilau, muito cansado, pensou mais de uma vez em cortar a linha e deixar que aquele peixe esquisito fosse embora.

Mas não o fez...

De repente, um vulto saiu da água em sua direção...

Era uma mulher muito branca que mal podia ser vista por causa da pouca claridade.

Estava nua e com o anzol cravado no pé direito.

Os cabelos longos, quase nos joelhos eram escuros como a noite.

Bilau ficou paralisado.

A moça pediu com suavidade que ele tirasse o anzol.

Bilau atendeu prontamente, retirando o anzol com a perícia de pescador experiente.

No mesmo instante o sangue vermelho e denso começou a sair do ferimento que estava muito maior por conta do esforço que fora feito nas tentativas vãs de soltar-se do anzol.

Bilau tirou da bolsa o vidro com tintura de arnica, despejou no ferimento e tamponou com um trapo sujo.

Quando a arnica tocou no pé machucado, a moça gemeu de dor e começou a chorar.

Bilau, apesar de rude, era homem sensível à dor alheia e abraçou a moça na intenção de consolá-la, explicando que aquela dor era necessária para a cicatrização.

Assim abraçados, Bilau sentindo o corpo quente da moça e ela sentindo-lhe os braços fortes, fitaram-se por um tempo difícil de ser determinado e, entre carícias, ela contou:

- Meu nome é Tacima e eu sempre vivi aqui...

A casa do meu pai, que hoje já não mais existe era a maior do vilarejo. O pessoal quase todo ano perdia grande parte da plantação ora por conta da seca, ora por conta da chuva forte demais e fora de hora...

Penalizadas pelo sofrimento de todos, eu e outras moças do vilarejo, viemos até o pontal rezar para o deus das águas para que aquela situação se modificasse.

Estávamos todas em meditação profunda quando um vento muito forte soprou como se quisesse acabar com tudo.

Todas as outras moças fugiram menos eu...

Eu queria mostrar para as companheiras que não devemos temer os fenômenos naturais.

Elevou-se então de dentro do riacho, como se fosse uma tromba d’água, um jovem de aspecto alegre, barba e cabelos longos e verdes, o corpo forrado de escamas que me disse:

- Meu nome é To-to Marrá Eli Kaiíche, sou o deus das águas. Se você quiser ser minha esposa, durante mil anos não haverá nem secas nem enchentes nesta região. Na próxima lua nova, virei buscá-la e sumiu.

No mesmo instante, tudo voltou ao normal.

Eu estava radiante, finalmente poderia fazer alguma coisa pelos seus vizinhos.

Falei com os meus pais sobre a decisão de esposar o deus das águas e, nos dias que faltavam para o reencontro, tratei de preparar o enxoval.

No dia marcado, todas as pessoas do vilarejo vieram para a beira do córrego, para ver o encontro do deus cujo nome parecia ao mesmo tempo o som das águas a cair dos telhados com goteiras, das cachoeiras e do canto dos arroios entre pedregulhos.

Ao chegarmos eu desci para uma das pedras brancas e fui imediatamente arrebatada por uma onda grande...

Em meu lugar só ficou o vestido branco com o qual estava vestida...

Desde esse dia, nunca mais se ouviu falar em secas nem enchentes.

Quando Tacima terminou sua narrativa, Bilau já estava completamente apaixonado.

Trocaram carícias e beijos ardentes até que os primeiros clarões do dia começarem a manchar o horizonte.

Docemente, Tacima se desvencilhou dos braços de Bilau, desceu para a pedra branca e de lá, com um sorriso radiante disse:

- Na próxima semana, estarei esperando por você.

Por muitas semanas esses encontros aconteceram e, para que a história não se espalhasse, Bilau passou a evitar os conhecidos...

Deixou de tomar pinga na barraca...

Deixou de pescar com os amigos de infância...

Por causa dessa mudança repentina, os colegas de Bilau passaram a segui-lo.

Numa das noites em que fora encontrar Tacima, os colegas viram o que os dois faziam e no amanhecer, a moça indo até a beira do Corguinho, se transformar numa Pirarara e desaparecer no rio.

Os colegas de Bilau foram até ele que, por causa da distração, não havia notado a presença de outras pessoas.

- Nós vimos tudo, não adianta negar.

- O que vocês viram?

- A mulher nua que estava com você e que se transformou em peixe antes de entrar na água.

Vencido pelas evidências e mesmo a contra gosto, Bilau contou a história e pediu a todos que jurassem por todos os santos que jamais revelariam o que tinham visto a quem quer que fosse.

Sabe como é segredo, né?

Um contou à mãe...

Outro contou à mulher...

Outro contou ao padre...

Outro contou a outro, que contou a outro...

Só sei dizer que até hoje, e note que esse causo aconteceu há um bandão de tempo, ainda se fala em Bilau da Peixa, um velho que morreu tem prá mais de cem anos...