Homem de branco

Quando tinha 5 anos, vi um homem. Vestia uma túnica branca. Pouco se podia perceber de seu rosto que parecia estar iluminado pela própria cor da vestimenta. Sem se mover, mas dando a impressão que os átomos que compunham toda sua estrutura estavam vivos e laborando, me olhou profundamente. Um olhar que não repreendia ou exaltava. Eu o percebi atento, sem saber exatamente onde meu corpo estava situado no espaço que não havia cor ou definição. Não fosse um sonho e se me deparasse com tal olhar, fora dessas circunstâncias, certamente não daria importância. “Todos gostam de olhar crianças”, dizem. Mas ele apareceu no descanso da consciência, na vulnerabilidade dos sentidos e trazia em si mesmo a presença intensa, repleta de realidade, que muitos homens e mulheres, no estado de vigília, não possuem. É por isso que, hoje, recordo, deste e de outros sonhos onde o homem de branco surgiu

No esticar dos ossos, na compreensão gradual da realidade que me cercava, não conseguia decifrar o “enigma” da aparição do homem de branco. Mas para que precisaria disto? Completara 10 anos de idade e nenhuma calamidade havia acontecido. Meus pais, com uma saúde de ferro. Continuei filho único. Não, isso não seria uma calamidade. Um irmão iria me distrair. Sempre fui uma criança muito quieta e ansiosa. “Precisa de terapia”, diziam meus pais.

Aos 12 anos vi o homem de branco. Reparei que a vestimenta, na verdade, terminava um pouco antes do joelho. Então, não era bem uma túnica. Agora, o branco brilhava com mais timidez. Desta forma, com o rosto menos iluminado, foi possível reparar sua fisionomia. Mas nada de diferente do que se via no dia a dia, com exceção do sorriso que, agora, surgia. Não conseguia identificar qual era de fato o sentido daquilo, o tal do “enigma”, mas me sentia em segurança. Parado no espaço, seu olhar estava levemente modificado em sua profundidade e, aliado ao sorriso, transparecia o doce entendimento de um grande mestre diante das falhas do aprendiz. Esperava que o sorriso não tivesse origem na personalidade estúpida de um adolescente. A verdade é que não conseguia me relacionar com os “amiguinhos”, escutava música “melancólica” (não fui eu quem criou o adjetivo) e na terapia, relatei um desejo pelo suicídio. Ser quieto e ansioso quer dizer: cultivar a dor sem explanações. Mas abri uma exceção ao terapeuta. Ora, ele me ouvia. E muitas vezes reparava que “só” ele me ouvia. É, meus pais estavam certos, precisa de terapia mesmo.

Completei 18 anos de idade. Terminava ainda o segundo ano do ensino médio enquanto alguns garotos de 17 anos já ingressavam na faculdade. A quietude e a ansiedade formaram tentáculos em volta de minha vida. Não havia espaço para a fuga, tampouco para a permanência. Fugir pra que? Ficar pra que? Todas as ações que realizava levavam para a dor. “Esse garoto está piorando, a terapia não ajuda, já levamos ao psiquiatra... veja... olhe os remédios que ele toma”, disseram meus pais ao terapeuta por telefone. Dentro de uma racionalidade típica e depois de algum esforço para a aquisição de conhecimentos, tentaram, com algum efeito, me convencer de que se tratava de uma depressão. Era necessário esperar e ter paciência.

Com 21 anos vi o homem de branco vestindo sua “túnica” que acabava antes dos joelhos. Com menos intensidade, ainda estavam lá o olhar profundo e o sorriso do “mestre” acompanhado de um toque leve de ironia e carinho sem afetação. Pareciam me dizer que, realmente, deveria esperar mais um pouco, que não precisava cair em desespero diante de meu estado de quietude e ansiedade. Realmente, eu não o conhecia. O que intrigava era que quanto mais sonhava com ele, mais natural ele se tornava. O que não implicava na perda de uma certa “magia”. Então, de maneira súbita, senti meu corpo, que na verdade dormia sob a ajuda de um “tarja preta”, se inclinando semi-horizontalmente para trás de modo que não perdi de vista o homem à frente. Ele, por seu turno, sem perder o olhar e o sorriso, avançou levemente para a minha direção, dando dois passos e pouco antes de finalizar o segundo, acordei.

Tentava compreender os reais motivos para tanta agonia dentro de mim. Eu me relacionava mal com as pessoas, desde pequeno. Trouxe comigo uma tristeza, uma nostalgia. Há pessoas que são reservadas e calmas. Muitos pensavam que eu fosse assim. A verdade é de quem olha não é? No espelho me via feio e burro, com uma sincera vontade de me destruir, de me bater. Algumas vezes cortei partes de meu corpo com uma lâmina de tal forma que meus pais não conseguiram notar. Não era minha intenção querer chamar a atenção deles para o fato. Se fosse assim, cortava a cara. E me questiono se, se assim o fizesse, eles de fato, perceberiam.

Aos 25 anos vi o homem de branco. Encontrava-me já reconhecidamente deitado frente à ele. Após ter dado os dois passos, levantou a mão direita em direção a um bolso, que ainda não havia percebido, e que se encontrava naquilo que ainda eu chamava de túnica, por falta de um nome melhor. Dali, alguma coisa surgia e emitia um brilho discreto. Com a mão ainda estendida, deu um terceiro forte passo quando notei que seu olhar agora era simples, não mais profundo. O sorriso, uma expressão equilibrada daqueles que estão executando sua tarefa diária. Com o olhar fixo em mim, acordei.

Se havia alguma coisa nessa vida que realmente me interessava era compreender esses sonhos. Não havia nada de mais real do que eles. Sempre quando os tinha, algo me fazia crer que alguma renovação era possível. Aquele homem, através do doce olhar e o sorriso confortador, talvez estivesse querendo cuidar de mim. Mas ao lembrar o cotidiano, junto aos meus pais, ao terapeuta, ao remédio, à necessidade urgente de se fazer algo na vida, os sonhos se tornavam distantes e ficava aguardando que algum outro surgisse pois poderiam me dar algum ânimo para recuperar algum sentido de vida que jamais encontrava. E eu não estava mesmo encontrando e assim eu fui, aos poucos, chegando a uma conclusão.

O “tarja-preto” parecia ser bastante funcional quando se tomava. “Era bater e valer”. Como sempre pensei em tirar minha própria vida, já sabia a quantidade exata que deveria tomar de comprimidos para que o fato pudesse ser concretizado com efeito. E eu decidi morrer, no entanto aguardava o homem de branco. Poderia me indicar algum caminho diferente que não o suicídio. Queria dizer que gostava dele. E que me fez bem.

Tudo já parecia dilacerado, não apenas pelos cortes físicos, mas pela insistente e maldita quietude e ansiedade que causavam uma dor invisível, impossível de localizá-la em alguma célula do corpo. Simplesmente não poderia mais aguardar. Como os meus pais não estavam em casa (ainda que estivessem, não faria diferença) separei os comprimidos e fui tomando um a um, lentamente, torcendo para que o destino me apresentasse mais um daqueles sonhos. Quando comecei a sentir a sonolência típica que o remédio trazia, tomei o restante necessário para consumar a morte. Deitei. Esperei. Os olhos se fecharam. Respirei um pouco mais. Dormi e depois acordei.

O homem de branco se aproximou outra vez, sorrindo, com algo que brilhava na mão direita. O brilho se aproximou de meu olho esquerdo, e ali um tempo ficou. Depois o direito. Em seguida, apertou levemente meu corpo, na região do estômago e perguntou “Apertando assim, dói?”. Pela minha expressão facial, foi fácil para ele entender que doía muito. Disse: “Quer fugir da vida, rapaz?”, com aquele mesmo olhar, aquele mesmo sorriso que vi tantas vezes. “Não quis fugir, eu estava te esperando, mas eu não aguentei”. O homem de branco, fingindo ter entendido o que eu disse, olhou para a direita e disse para duas pessoas que estavam ao meu lado: “Fizemos um procedimento muito raro com ele. Se ainda vive é porque merece viver. Não conheço vocês, mas olho e sorriso nele.”

Fábio Caldas
Enviado por Fábio Caldas em 28/06/2015
Código do texto: T5292571
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.